Criar ou não Criar
Uma questão complexa
CRIAR OU NÃO CRIAR:
Uma questão complexa
Escrito por: Maria Christina Napolitano
Criar pássaros “em cativeiro” é legal ou ilegal, ético ou antiético, certo ou errado?
Estas perguntas poderão ser formuladas e respondidas, simultaneamente, por todos os criadores de pássaros em cativeiro, bem como por todos aqueles que apóiam ou criticam esta atividade.
Para obter respostas justas a estas perguntas, é preciso verificar em que escalas de tempo e de espaço estamos nos colocando. É necessário, também, indagar, não os motivos, mas os resultados que iremos obter em determinadas escalas temporais e espaciais.
É claro que, por vezes, estaremos posicionados diante de situações-limite ou de casos específicos, que nos levariam à necessidade de discussões mais profundas sobre este assunto.
Não é este, porém, o momento e nem é este o espaço próprios para tais discussões.
Queremos, aqui, simplesmente, abordar a criação de certos pássaros em regime doméstico por ornitófilos que amam estes animais, dedicam-se à sua procriação, apreciam a proximidade dos mesmos, tratam estes seres com respeito e, assim procedendo, contribuem para que não sejam extintos.
Questão de escalas
Atualmente, existem muitos grupos de criadores de pássaros, aficionados na criação de bicudos, canários-da-terra, curiós, coleiros, pintassilgos, azulões, sabiás, trinca-ferros e assim por diante.
O lema que foi concebido pelo ornitólogo Paulo Rui de Camargo: “criar para não extinguir”, por si só, parece ser, em princípio, um resultado positivo para não se criticar a criação destas aves, fora de seus habitats de origem – os ambientes silvestres – até porque, a maioria das aves criadas em gaiola já nasceram
em cativeiro e, assim, têm condições de desenvolver suas propriedades características.
Mencionaremos um exemplo prático para esta questão de escalas, no espaço e no tempo, para se obter uma visão ampliada e esclarecedora sobre esta discussão polêmica.
No início do século XVIII, o notável ornitólogo Alexander Wilson observou um bando de pombas silvestres migratórias obscurecendo o céu por mais de quatro horas. Estimou que este bando compunha-se de algumas dezenas de milhões de aves e que teria cerca de 386 km de comprimento e 1,6 km de largura.
Por volta de 1914, a pomba silvestre norte-americana havia desaparecido para sempre! Como pode ocorrer que uma espécie tão abundante na América do Norte tenha se extinguido em tão poucas décadas?
Resposta: os seres humanos. As razões principais da extinção desta espécie foram a caça comercial, sem controle e bem assim a perda de habitat e reservas de alimentos, na medida em que a vegetação nativa ia sendo eliminada, para dar lugar a fazendas, plantações e povoados.
As pombas silvestres eram agradáveis ao paladar; com suas plumas faziam-se boas almofadas e travesseiros, além de serem muito utilizadas como fertilizantes. Eram mortas com facilidade, porque voavam em bandos gigantescos e faziam ninhos em colônias longas e estreitas. As pessoas capturavam a pomba silvestre viva, fechavam seus olhos costurando-lhe as pálpebras e a colocavam em um lugar elevado para servir de chamariz. De imediato, o bando de pombas curiosas aterrissava junto a este ponto. Em seguida, as pombas eram capturadas em redes, que podiam conter cerca de 1000 aves, que eram mortas.
Em princípios de 1858, a caça em massa das pombas silvestres tornou-se um grande negócio.
Utilizavam-se escopetas, fogo, emboscadas, artilharia e até dinamite. Também eram asfixiadas, queimando-se o pasto ou se utilizando enxofre, abaixo de seus lugares de repouso. As aves também eram utilizadas como alvos, em práticas de tiro.
Em 1878, um caçador profissional de pombas silvestres ganhou 60.000 dólares, matando 3 milhões de aves, em seu território de nidificação, perto de Petoskey, no Estado do Michigan.
Em princípio da década de 1880, a caça comercial terminou, mesmo porque só haviam restado alguns milhares de aves. A esta altura, a recuperação da espécie tornou-se impossível, uma vez que estas aves só punham um ovo por ninho. Muitas das pombas sobreviventes morreram de enfermidades infecciosas e devido a fortes tormentas, quando de sua migração anual de outono, para a América Central e do Sul.
Em 1896, a última grande colônia reprodutiva, de umas 250.000 aves, localizou-se perto de Bowling Green Ohio, não longe de Mammoth Cave. Os caçadores foram notificados por telégrafo e todas, exceto umas 5.000 aves, que escaparam, foram mortas. Em Ohio, em março de 1900, desapareceu a última ave conhecida desta espécie em estado silvestre, uma fêmea chamada Martha, que morreu no Zoológico de Cincinnati, em 1914. Seu corpo dissecado encontra-se em exibição no Museu Nacional de História Natural, em Washington.
Com relação àquelas aves brasileiras, acima mencionadas, bicudos, canários-da-terra, pintassilgos, curiós, sabiás, coleiros, cardeais, azulões, trinca-ferros – que não vivem, exatamente, em bandos, como as extintas pombas norte-americanas – vem acontecendo, em uma outra escala, algo parecido, em termos de extinção. Embora estas aves da fauna brasileira não estejam sendo propriamente mortas ou massacradas, estão escasseando sem que, nem mesmo as Organizações Protetoras dos Animais e da Vida Silvestre, sem que os Governos, Federal ou Estaduais, as instituições e órgãos ambientais consigam evitar a extinção.
Os motivos não são poucos, entre eles, degradação ambiental, perda do habitat natural e dos alimentos necessários, uso indiscriminado de defensivos agrícolas, caça predatória e assim por diante.
No entanto, é a exata colocação de escala, em que tal extinção vem ocorrendo, que se torna a questão mais preocupante: estes exemplares da fauna vêm sendo capturados paulatina, furtiva e desapercebidamente, sobretudo por caçadores clandestinos e por pessoas de baixa renda que visam, com a venda esparsa e
indiscriminada destes animais, uma complementação de seus ganhos.
Ou seja, estas pessoas estão praticando, em outra escala, o mesmo extermínio das aves norteamericanas.
Embora estas aves canoras brasileiras, capturadas para o comércio, não estejam, exatamente, sendo mortas nem sacrificadas, porque, felizmente, o que atrai nestas espécies é a beleza de seu canto e de sua plumagem, elas poderão ser levadas à extinção, se não forem criadas em gaiolas por ornitófilos conscientes.
Muitos biólogos chegam a ponto de considerar que a acelerada e epidêmica extinção planetária é ainda mais grave que a diminuição da camada de ozônio na atmosfera e o aquecimento global, pois o que está ocorrendo é irreversível e está acontecendo em tempo rápido.
Concordâncias e discordâncias Cabe dizer que muitos criadores não concordam com a palavra “cativeiro”, pois ela poderia sugerir e dar a conotação de “maus tratos”.
Na verdade, esta expressão acabou sendo consagrada, com esta conotação errônea.
O melhor seria empregar a terminologia criação de pássaros em regime de domesticidade ou em “condições” domésticas, expressões estas que se aproximam da nomenclatura adotada pela “Convenção sobre a Diversidade Biológica” (de 1992), assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro, cujo texto foi aprovado pelo Decreto Legislativo brasileiro, nº 2, de 03 de fevereiro de 1994.
O artigo 2º (sobre “Utilização de Termos”) estabelece que “condições in situ”, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, significa que existem condições para desenvolvimento de suas propriedades características (em termos de proteção dos recursos genéticos), nestes ambientes domésticos.
Aliás, é exatamente isto que os criadores de passarinhos vêm fazendo há muitos anos: propiciando o aprimoramento genético das populações de aves de gaiola. No mesmo sentido, a Convenção da Biodiversidade esclarece que “conservação ex situ” significa a conservação de componentes da diversidade biológica fora de seus habitats naturais, o que nos leva a reconhecer a possibilidade de criação de espécies de aves silvestres em regime de domesticidade.
Assim sendo, os criadores de pássaros em regime doméstico não deveriam ser criticados pelos diferentes segmentos sociais. E tampouco não poderão ser penalizados pelos órgãos competentes (seja em âmbito administrativo, seja em âmbito criminal), na medida em que estiverem enquadrados dentro dos
parâmetros legais.
Da mesma forma, os criadores de pássaros, por não imprimirem maus tratos a estes animais*, e também por se adequarem às normatizações regulamentares (leis, portarias, instruções normativas), estarão isentos de sanções previstas pelos órgãos fiscalizadores ambientais. A par disso, aqueles que criam e comercializam os produtos de seus aviários, deverão obedecer às exigências e restrições regulamentadoras impostas pelos órgãos fiscalizadores ambientais
É louvável que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA estabeleça regras para proteção da fauna; mas é lamentável observar que este órgão venha trazer embaraços para aqueles que pretendem criar aves em regime de domesticidade.
Lembre-se que a Constituição Brasileira, de 1.998, de maneira inovadora, veio recepcionar a preocupação do legislador ordinário ao consagrar como dever do Poder Público e da coletividade a proteção da fauna e da flora brasileira (art. 225, § 1º, inciso VII da CF), em sede constitucional.
Concluindo, somos de opinião que os criadores de aves estão, à sua maneira, em escala local, contribuindo para a proteção de uma parte da fauna brasileira e da biodiversidade da Terra. De igual modo, estão contribuindo para equilibrar, de certa forma, a diminuição gradativa e séria dos recursos faunísticos, possibilitando, através de suas práticas de criação adequadas, que tais pássaros possam ser reconduzidos, futuramente, para o conhecimento das próximas gerações.
Talvez, os planejadores ambientais e os cientistas de amanhã venham a descobrir nestas aves canoras, além de sua beleza estética e recreativa, outras importâncias: econômica, médica, científica, ecológica e cultural.
De qualquer forma, mesmo em termos éticos, seria incorreto criticar os criadores destas aves, já que eles, com suas técnicas adequadas de manejo, estão evitando que se acelere ou que ocorra a extinção destas espécies canoras.
O ideal seria, além de salvar a biodiversidade, proteger-se os ecossistemas em sua totalidade, pois se reconhece que salvar a(s) vida(s) silvestre(s) é também salvar o local onde elas vivem.
Fica aqui uma reflexão e um apelo para aqueles (autoridades governamentais, ONG’s, comunidades, instituições em geral, indivíduos) a quem seja possível proteger os habitats destas espécies, que façam o seu papel, cooperando e se empenhando, na medida do possível, em pequena, média ou larga escala, para que não se acelere a extinção destes nichos ecológicos naturais.
* Vide Lei Federal n.9.605, de 12/02/1998, a chamada Lei de Crimes Ambientais.
Quem sabe um dia, os ornitófilos-criadores de pássaros ou seus descendentes, possam ser chamados a reintroduzir estas preciosas aves canoras, se não a seus habitats naturais, pelo menos, a áreas protegidas, onde se possa assegurar sua proteção e utilização sustentável.
A articulista é Consultora Ambiental, Especialista
em Ciências Ambientais e em Direito Ambiental
e Doutora em Direito das Relações Sociais.
Escrito por Maria Christina Napolitano, em 5/11/2005