Pássaro beija flôr
Um belo relato
Caçador de Bicudos
Escrito por: Mário Prata em 29/3/2003]
O caçador de bicudos
O que mais me impressionou foi como aquela rede ficou grande. Aberta, devia ter uns 10 metros por 30. Dobrada, como eu costumava ver, era um pacote bem pequeno. Era uma rede de caçar passarinhos. Tinha chegado pelo correio, importada, cara. Me lembro da sua alegria a nos mostrar a rede. Era preta. Os bicudos que se cuidassem.
Ave passeriforme fringilídea (Oryzoborus crassirostris), largamente distribuída no País. O macho é preto, com um espelho branco na asa; a fêmea, parda, com a parte inferior pardo-avermelhada e o pescoço mais claro. Alimenta-se de sementes de capim, e é muito apreciada como ave de gaiola.
Resumindo, o bicudo é um passarinho. Nem bonito nem com canto tão agradável. Mas ele ia até o fim do mundo caçar bicudos. Daí, para as reuniões com outros bicudeiros de todo o País, para concurso e campeonatos de cantos, era um tiro.
Ele esticava a rede entre as árvores, lá no Mato Grosso. Ele, o passarinheiro (contratado no local, sabedor dos ninhos e caminhos) e eu. Psiu!, me dizia. E, agachado atrás dos arbustos, começava a assoviar imitando um bicudo.
Além de médico, rotariano e meu pai, era um caçador de bicudos. O resto não importava. Os bicudos!!!
Meu pai levava, nas caçadas, o que hoje eu chamaria de flat de passarinho. Era uma gaiola vertical, com vários apartamentozinhos. Um para cada bicudo caçado. Na rede, depois de meia hora estavam vários pássaros que não a enxergavam (aí é que estava o segredo) e se entrelaçavam por ali. Era quase invisível. Meu pai ia lá com o passarinheiro, tirava os que não eram bicudos e soltava. Tinha vez que não encontravam nenhum bicudo. Mas ele ficava ali até o sol se pôr porque, segundo ele, era a melhor hora para se caçar. Recuávamos e ele voltava a assoviar atrás da moita. Ele levava a coisa a sério. Passava, às vezes, uma semana na função para trazer um, dois bicudos.
Na nossa casa tinha uns 15 engaiolados. Me lembro do nome de alguns: Melodia, Porém, Todavia, Contudo, Aluízio, Xibiu, Desemboque e Nogórdio. O Nogórdio, um dia, eu perguntei a ele o que era, porque os outros nomes eram até poéticos, senão gramaticais. E ele me mandou olhar no pai dos burros, o dicionário. E, até hoje, eu não havia procurado. Mas, escrevendo estas memórias do velho e bom Bertin, fui cabisbaixo e ignorante ao pai dos burros. E lá, está explicado:
Nó górdio: segundo a lenda, nó que prendia ao timão o jugo da carreta do rei Górdios, depositada no templo de Zeus, em Górdios, capital de Frígia, sobre o qual existia a profecia de quem o desatasse tomaria para si a Ásia; pela tradição, o conquistador Alexandre de Macedônia cortou tal nó com sua espada e invadiu a Ásia. Houaiss, Editora Objetiva.
No começo (desde que me entendia por gente), meu pai tinha de tudo quanto era passarinho. Canário, canário-da-terra, periquito australiano (os que eu mais gostava) e até uma pentelha de uma araponga. Com o tempo foi canalizando tudo para os bicudos. Agora ele só tinha bicudos. Uns pretos, outros marrons. E ele se gabava – em casa e nos campeonatos de bicudos e curiós – de ser um dos três criadores do Brasil a conseguir fazer com que eles se procriassem no cativeiro. A palavra cativeiro era ele mesmo quem usava.
Meu pai era um homem generoso, bom e honestíssimo. Desde pequeno eu não entendia por que ele prendia dentro de pequenas gaiolas aqueles bichinhos que viviam felizes lá no Mato Grosso. No fundo, achava aquilo uma pequena maldade. Tinha vontade de soltar todos. Uma vez ameacei, adolescentemente, e ele me disse: se soltar eles morrem. Não sabem mais viver em liberdade.
O problema chato, para mim, era tratar dos bicudos. Sim, quando eu ficava de castigo – e isso era quase todo dia -, uma das condenações era tratar dos passarinhos. E não era uma tarefa fácil. Houve épocas que eram mais de 20. Por isso mesmo que era um castigo. Primeiro, tinha que tirar a parte de baixo da gaiola, com um jornal dobrado em cima de uma madeira que deslizava para fora. Ali ficava a casca do alpiste comido e os ressecados cocôs. Tinha que lavar a madeirinha (\\\”muito bem lavado!\\\”), recortar um jornal (A Gazeta Esportiva) e recolocar lá dentro. Agora trocar a água. Tinha cocô ali, também. Agora pegava a caixinha onde ficava o alpiste e tinha que assoprar. Horas assoprando até não ter mais nenhuma palhinha sem a semente, que era o que interessava. E complementar a alimentação do bicudo. E tudo isso enfiando a mão dentro da gaiola – pelo menos seis vezes – ficando sujeito a eventuais bicadas. E, depois disso tudo, varrer o chão da varanda.
A partir de 2000 ele começou a fazer hemodiálise, já bem velho. Mas, morando sozinho com a minha mãe, ainda cuidava dos últimos 12 bicudos, a quem chamava pelo nome, com quem conversava. Conhecia – é claro – o canto de cada um deles. Tinha seus troféus.
Mas foi aí que o fato se deu. O médico disse que ele poderia pegar uma infecção por causa dos bicudos e seria fatal. Ele tinha que se desfazer daquilo, daquele pedaço da sua vida. Ainda tentou contratar um tratador de bicudos. Mas o médico insistiu. Não pode mais ter bicudo aqui!
Vendeu os bicudos por 8 mil reais. Eu sabia que aquele dinheiro era para sustentar os últimos meses de vida dele. Sem os bicudos a sua vida não teria mais sentido.
Ficava sentado na varanda dos fundos, fazendo palavras cruzadas e olhando para uma parede branca com 12 solitários pregos. Xibiu, Porém, Todavia, Desemboque, Aloízio, ia dizendo.
E ia morrendo. Morrendo feito um passarinho.
Escrito por Mário Prata, em 1/9/2003