Mascote e o crime
Costumes
O mascote e o crime (Texto do Estadão de 12/04/2002 – Ciência
Aumentam as denúncias e a repressão ao tráfico de animais silvestres, mas ainda há muitas lacunas legais e sociais a serem discutidas.
Campinas – Um levantamento realizado na cidade de Manaus, no Amazonas, mostrou que em 67% das residências existe um ou mais animais da fauna silvestre em cativeiro. São, principalmente, araras, papagaios, maritacas e pequenos primatas, mas também existem muitos felinos de pequeno porte – sobretudo gatos-maracajá – e serpentes – com a jibóia liderando as estatísticas. Faltam dados sobre outras cidades, porque nunca foram feitos levantamentos nacionais, mas não seria de se esperar uma porcentagem muito diferente.
E não são só cidades da região amazônica. Com esse traço cultural um pouco menos marcado apenas na região Sul, a história se repete no Pantanal, em todo o Centro Oeste, Nordeste e Sudeste. Mudam as espécies preferidas, mas não o hábito de adotar mascotes da fauna nativa, extremamente arraigado entre os brasileiros.
Na metrópole de São Paulo, maior mercado comprador do país, todos os dias a Polícia Ambiental e o Ibama recebem denúncias de vizinhos, que ligam para avisar que a velhinha ao lado tem um papagaio ou o adolescente da outra rua cria jacarés na banheira. Em geral, estas denúncias são motivadas mais pelo incômodo de conviver na proximidade de bichos barulhentos ou de alguma forma ameaçadores do que pela consciência em relação aos impactos da retirada de animais silvestres do seu ambiente natural.
As autoridades não tem como atender a todas as denúncias de “gatos pingados”, embora mantenham uma lista de casos denunciados para serem averiguados, quando houver tempo. E quase nunca sobra tempo, porque eles estão mais ocupados indo atrás das chamadas “feiras do rolo” ou de denúncias contra traficantes, que possam resultar na prisão dos responsáveis pelos esquemas de comércio ilegal, com grandes quantidades de animais, mantidos, via de regra, em péssimas condições.
A repressão ao tráfico é importante e vem crescendo com este foco sobre os traficantes e não sobre os donos de mascotes. Segundo o gerente executivo do Ibama em São Paulo, Wilson Almeida Lima, só nestes primeiros meses de 2002 já foram apreendidos cerca de 1.500 animais, no estado de São Paulo. No ano passado, foram cerca de 7.772 animais ou 240% a mais do que o total apreendido em toda a região Sudeste, em 2000. E isso sem contar os bichos apreendidos pela Polícia Ambiental, que somaram, em 2001, mais de 18.000, também em São Paulo.
A perspectiva de punição pode inibir o tráfico, mas deixa as duas pontas do comércio ilegal de fauna nativa ainda no vácuo. De um lado, os donos de mascotes continuam com seus animais, continuam comprando e sustentando o tráfico. Nem sempre são punidos, porque não há como apreender animais em 67% das residências de uma cidade, mas também não conseguem regularizar sua situação.
Houve época em que podiam legalizar seus mascotes, provando que estavam bem cuidados, mas, desde 1998, com a entrada em vigor da Lei de Crimes Ambientais, isso não é mais possível. Mesmo que o mascote seja, de fato, de estimação, e já nem tenha condições de ser devolvido à natureza, de tão acostumado com seu dono, na base desta relação está um crime, que é a retirada do animal de seu ambiente.
Eventualmente, juízes têm autorizado a permanência dos mascotes com os donos, porém esta é uma questão muito longe de resolvida, seja do ponto de vista legal ou cultural. Só com muita discussão se vai chegar a um consenso que, talvez um dia, se transforme em lei.
Existe, claro, a alternativa de mercado dos criadores, que têm aumentado a oferta de mascotes de fauna nativa criados em cativeiro, com autorização dos órgãos competentes. Mas até que se substitua, de fato, toda a população de animais tirados da natureza, por espécimens já nascidos em cativeiro, muitas dores-de-cabeça e muitas denúncias de vizinhos mal resolvidas ainda vão rolar.
Na outra ponta do tráfico, também merecendo longas discussões com participação da sociedade civil organizada, estão aqueles que capturam os animais silvestres. Geralmente são pessoas de baixíssima renda, que ganham pouco pelo “serviço” e têm nesta atividade quase a única fonte de renda. Como os donos de mascotes, eles compactuam com um crime ambiental, mas não podem ter o mesmo tratamento dos intermediários, que ficam com o grande lucro e movimentam todo o esquema, num mercado estimado em US$ 1 bilhão/ano, só no Brasil.
Para tais comunidades de “capturadores”, a solução é teoricamente simples: eles precisam de outra alternativa de renda. Na prática, há centenas de caminhos, todos eles com muitos obstáculos e desvios.
De qualquer forma, há esperança das lacunas legais e sócio-econômicas das duas pontas do tráfico serem vencidas com algumas pontes, feitas de educação ambiental e conscientização. Já existem iniciativas oficiais e de organizações não governamentais importantes, capazes de fazer frente ao gigantesco esquema ilegal do tráfico. É preciso deixar que elas se multipliquem e se tornem mais eficientes.
Escrito por Liana John, em 2/9/2003