Os criadores no combate

ASPECTOS GERAIS DA PARTICIPAÇÃO DOS CRIADORES NO COMBATE AO TRÁFICO DE PASSERIFORMES

Nas apreensões de animais do tráfico, o maior problema é, sem dúvida, o encaminhamento e tratamento corretos, urgentes e imediatos, porque a morte e o sofrimento não esperam, nem o animal que sofre pode esperar. A dor dói na hora; não aguarda o socorro chegar.

Confesso que não tenho – nunca tive – interesse em pássaros ou quaisquer aves caçados, selvagens, de origem duvidosa ou maltratados, de tráfico ou não, pelo risco

que oferece aos nossos plantéis. De minha parte, sinto que é preciso mais do que nunca tratar dessa questão com honestidade, assumindo a verdade e não ficar com falácias, para demonstrar que meu objetivo maior seria a preservação e o combate ao tráfico. Não é!

Eu crio passarinhos porque gosto deles e a ajuda que presto na preservação e no combate ao tráfico, neste aspecto, é mera conseqüência. Para ser mais sincero, nem trabalhar com objetivo econômico eu aprendi ainda, porque a minha principal preocupação é de buscar sempre encontrar e criar pássaros

melhores, que mais me agradem; é evidente que lucrar é bom, mas quanto mim fica em segundo plano.

Que a criação doméstica combate efetivamente o tráfico e contribui sobremaneira para a preservação não há mais dúvidas, mas esta atribuição não pode e não deve ser imposta ao criador, obrigatoriamente, como objetivo maior, mesmo porque não tem ele o reconhecimento devido nem lhe é dada a legitimidade de atuar diretamente nessa área. Qualquer órgão ou organização não governamental pode participar diretamente das apreensões, conduzir e alojar animais, mesmo que para isso não haja previsão legal. Já o criador, se estiver apreendendo, transportando ou alojando animais, com a finalidade de disponibilizá-los ‘a autoridade competente, será tratado como traficante. Não se discute que houve precedentes que autorizam essa interpretação. O que se impõe é o conhecimento de que, até por esses precedentes, ao criador não é dado o poder de atuar e não deve se envolver diretamente nessas ações e, portanto, não lhe pode ser cobrada a função precípua de combater o tráfico.

A criação de passeriformes, como de aves ornamentais ou qualquer outra espécie animal, deve ser encarada tal como ela é, a utilização sustentável de recursos naturais, seja por hobby, com finalidade econômica, como terapia ocupacional, todas elas com capacidade de gerar receita, tributos e empregos, direta ou indiretamente, movimentando a economia ao longo de toda a cadeia de produção, envolvendo a agricultura, a indústria, o transporte, o comércio, fontes de riqueza ou divisas para o país. Nas comunidades carentes, a utilização racional desses recursos podem ter um importante papel social, de modo a promover o sustento necessário das respectivas populações, minimizando os efeitos da pobreza.

Falo por mim, mas acredito haja outros criadores que, como eu, não têm interesse em aves de origem selvagem, vindos do tráfico ou da caça, ou procedentes de criadouros ou mantenedores clandestinos, em ambos os casos ocultos aos olhos da lei, longe ou escondidos do alcance das autoridades, em ambientes possivelmente infectos e imundos, portadores das mais diversas moléstias. Aceitar essas aves implicaria na necessidade de possuir ou construir ambientes separados do plantel, para quarentena e hospedagem, que não podem ser o mesmo, de modo a separar doentes ou com suspeita de doença, ou novos acolhimentos, daqueles sadios e já tratados e curados, mesmo assim com risco de contaminação dos nossos criadouros.

Normalmente a falta de espaço é um dos maiores problemas para o criador, pela necessidade de se manter uma área ideal para cada indivíduo, o que o impede muitas vezes de ampliar a criação. São bem poucos os que dispõem de instalações já prontas e adequadas, ou de possibilidade de construí-las, para receber aves apreendidas.

Em se tratando de aves de canto, os passeriformes, geralmente esses pássaros interferem no canto dos pássaros criados, por diversificação de espécies ou por má qualidade de canto, tornando necessário o isolamento acústico ou a manutenção em lugar distante. Isso implica em disposição de área e em segurança, pela responsabilidade que gera ao protetor provisório.

Para todo tipo de ave, sumiços – até por ataque de predadores-, furtos e roubos – hoje fato um tanto constante -, fugas e óbitos devem ser comprovados. Ainda com possibilidade da comprovação não ser reconhecida e aceita.

Disponibilidade de tempo ou mão-de-obra de tratadores, despesas com alimentos, remédios e médicos-veterinários, nem sempre suportáveis pelo criador que já tem tantos encargos, tantas despesas, e ainda tendo de provar pelo menos uma vez por ano, no caso de amadoristas, ou duas, no caso dos comerciais, a licitude de sua atividade.

A provisoriedade do abrigo e dos cuidados necessários também é uma incógnita. O procedimento legal e os entraves burocráticos, no mais das vezes morosos ou intermináveis, tornam a ave domesticada demais para a soltura, com a perda das características naturais, quando assim já não chega da apreensão.

Temos ainda a resistência contra a soltura. Alegam-se o perigo de transmissão de doenças aos selvagens ou a possibilidade de prejudicar o ecossistema. Particularmente eu acredito que essas preocupações não devem

ser consideradas com tanto rigor quanto as aves, principalmente os passeriformes. No Brasil, a grande maioria das espécies de passeriformes e algumas outras aves de boa aceitação no mercado, portanto de interesse para o traficante, ocorrem em todo ou quase todo o território nacional, onde as populações se acomodam conforme a necessidade, os predadores naturais existem por toda parte e não existem pontos intermitentes de modo a evitar que as moléstias se transmitam naturalmente. Se assim não for, a Natureza é sábia e fornece meios naturais de combate das doenças e de desenvolvimentos da defesas naturais do organismo. Algumas espécies alienígenas foram introduzidas no país e nem por isso nossa avifauna foi prejudicada, como ocorre com espécies invasoras de outros tipos de vida. Mas nada impede que as aves apreendidas sejam devidamente tratadas e soltas já livre de quaisquer doenças. As aves de ocorrência regional, depois de tratadas e fortalecidas, se suportaram as agruras do tráfico, podem suportar o deslocamento para suas regiões de origem. Não acredito, pois, em desequilíbrio ambiental por soltura de aves. No entanto, a resistência existe. Um obstáculo a mais para uma destinação rápida dessas aves.

Os cuidados devem ser dispensados com zelo e dedicação. Ou faz , ou não faz; se fizer, tem de ser bem feito. Mas o Poder Público não oferece incentivos para que o criador possa dedicar-se na nobre tarefa de salvar e proteger os animais apreendidos. Antes apresenta impecilhos difíceis de serem contornados.

No final de tudo, a ave acaba ficando com o criador, que acaba se tornando um escravo dela, tendo de cuidar da coisa pública sem poder utilizá-la para a reprodução porque, dependendo da espécie, não tem a

qualidade genética ideal ou porque não é permitido reproduzi-la, já que não tem a posse definitiva, documento ou lei que aprove sua utilização. Em reconhecimento, o abnegado protetor daquela vida recebe a denúncia contra si, a desconfiança da autoridade e a perseguição da Imprensa. É colocado como um execrando diante a sociedade, no mesmo nível do traficante, quando não confundido com aquele.

No entanto, isso não quer dizer que eu não seja também adepto da preservação e do combate ao tráfico. Lutar pela preservação da nossa biodiversidade, combatendo o tráfico e a depredação ambiental, é um dever de todo cidadão.

Mas eu penso que cada um deve fazer a sua parte e todos agirem em conjunto, num trabalho planejado e integrado com todos os setores que atuam nessa área, porque os atos isolados de cada grupo não fazem mais do que confundir e embaraçar qualquer trabalho que pudesse ser a solução para o problema. É

muita gente fazendo tudo e fazendo nada. E essa tarefa, racionalizada como deve ser, não será fácil de ser efetivada, dado aquilo que a mim parece, por alguns, mais interesse em aparecer na midia ou na comunidade, reclamando para si ou louros até de um mal serviço, e conseqüentemente de um mal resultado, do que a efetiva solução do

problema. Isso inviabiliza qualquer tentativa de um resultado ao menos satisfatório no trato dessa questão, tanto quanto uma satisfação sobre o destino das aves apreendidas.

É o que temos visto. Na pressa de ser o primeiro, no afã desesperado de se declarar o salvador, o sujeito recolhe os animais mesmo sem ter pensado antes no seu socorro, sem ter tido a noção de onde abrigá-los, sem vislumbre qualquer quanto a sua destinação. Não é de se duvidar que esses animais acabem sofrendo mais com seus salvadores do que já sofriam com os delinqüentes. Depois não é apresentada de forma clara, com a mesma difusão, a destinação das aves, quais foram soltas, quais ficaram com quem, qual o estado atual, se estão sendo reproduzidas e preservadas. Isso pode acarretar uma desconfiança, porque o destino, a vida e o bem estar desses animais – o futuro deles -, são tão importantes quanto os motivos que levaram ‘a sua apreensão.

Acredito, por isso, que a função ou tarefa de apreensão seja determinada com exclusividade a um só órgão da Administração Pública, extingüindo-se de vez

a mesma competência atribuída a diferentes personalidades: Polícia Ambiental, Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, IBAMA, ONGs, autoridade federal, autoridade estadual, autoridade municipal, centros de triagem, zoológicos – todos com idêntica competência para apreender e não saber o que fazer com o produto da apreensão. Fica aquele corre-corre, telefonemas daqui e de lá, animais presos o dia todo, sob sol ou sob chuva, diante das Delegacias, aguardando interrogatórios, aguardando abrigo, aguardando veículo adequado para transporte, e quando mal-e-mal as coisas se resolvem, já morreram mais do que morreriam, talvez, em poder do traficante.

Isso tem de acabar. É preciso planejamento e organização, pré-estabelecidos, já prontos antes da ocorrência do ato criminoso. Não é, pois, somente antes de uma apreensão determinada, mas constantemente preparados, para o fato futuro que, obviamente, ainda vai acontecer. Ora, sabemos que crime de tráfico pode ocorrer num local estabelecido, como um depósito ou uma feira, ou em locais interligados, como pontos de coleta, pontos de apoio e pontos de

distribuição administrados por quadrilhas organizadas, ou, ainda em trânsito entre um e outro desses pontos. Sendo assim, em determinados casos não se pode aguardar um planejamento rápido e eficaz de apreensão, socorro, deslocamento e guarida, sem que haja um sistema pré-organizado para esses

fins. Para isso, é preciso estabelecer as competências e distribuir as funções, hierarquicamente, de modo a um assumir a autoridade e o comando da operação apenas na falta do outro.

Assim, ao IBAMA cabe legislar e dirigir a destinação dos animais. ‘A Polícia Ambiental, por seu poder de força e de armas, executar a apreensão e entregá-la a quem de direito, que prestará os primeiros socorros, o transporte rápido e o alojamento confortável e seguro. Na falta dela, pela ordem, as Polícias Federal, Civil e Militar, todas com a mesma capacidade e em substituição uma da outra, quando necessário. Em caso de apoio ou

reforço, o comando da operação deve seguir a ordem estabelecida. As autoridades federais, estaduais e municipais, os centros de triagem e os zôos, também pela ordem, oferecerão o apoio necessário ao sucesso da

operação. ‘As ONGs e ‘a Imprensa caberão a denúncia e o acompanhamento apenas e tão somente visual da operação, sem se envolverem diretamente no trabalho das autoridades.

Resta saber com quem ficaria a tarefa mais importante e mais urgente, de prestar os primeiros socorros, providenciar o transporte rápido e o alojamento adequado.

Não é novidade que o Estado nem sempre possui recursos suficientes para financiar inovações desse porte, em que se exige instalações e veículos adequados e pessoal especializado, distribuídos nas mais diversas localidades. Tanto é verdade que até hoje não existe uma definição quanto aos animais apreendidos, sendo a questão tratada sempre de maneira circunstancial, provisória, improvisada. A solução está, pois, na execução desses serviços, de interesse público, por particulares ou empresas privadas, por delegação do Poder Público, através da concessão, permissão ou autorização, o instituto que mais se adequar ao caso.

A proposta é delegar a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado a tarefa de prestar os primeiros socorros, o transporte e o abrigo adequados para os passeriformes apreendidos, como serviço tarifado.

Mediante uma discussão ampla, mas urgente, com os setores interessados, com a participação de experientes criadores de pássaros e aves ornamentais, o IBAMA, assessorado por profissionais especializados em primeiros socorros, nutrição, manejo, reprodução e soltura, e outros que se fizerem necessários, estabeleceria através de ato normativo um programa básico de atendimento, transporte, alojamento, tratamento médico, manutenção, distribuição e entrega para soltura, onde se especificariam as exigências quanto a veículos de resgate dotados de viveiros, equipamentos de primeiros socorros, medicamentos, alimentação e água, instalações adequadas para a guarda e cuidados necessários, com água potável, alimentação, tratadores, veterinários e pessoal necessário ‘a prestação do serviço.

Os profissionais, veterinário e tratador, acompanhariam o trabalho desde o início, no local da apreensão, assumindo a partir daí a responsabilidade, já prestando os socorros necessários in loco e fariam os pássaros chegar em segurança até o abrigo, fazendo-se acompanhar de um agente da Polícia Ambiental ou substituto, onde seriam separados, relacionados, colocados em viveiros ou gaiolas individuais, conforme a característica da espécie, cuidando adequadamente até a destinação final. Das relações seriam extraídas vias para a autoridade responsável pela apreensão e o IBAMA, que se encarregaria de providenciar a soltura o mais depressa possível, cuidando desde logo do local e da autorização judical, podendo o veículo de resgate do concessionário, permissionário ou autorizatário conduzir as aves até o local escolhido.

Os pássaros que não se encontrassem em condições de soltura seriam relacionados, marcados e disponibilizados primeiramente a criadores, visando a reprodução e preservação, e em seguida a outros intessados, todos devidamente legalizados e cadastrados no CTF, de tudo devidamente informado o IBAMA para fins de fiscalização e controle.

A prestação do serviço não teria finalidade lucrativa, mas receberia uma tarifa diária a ser paga pelos destinatários dos pássaros que não podem ser soltos. O valor dessa tarifa seria fixado de acordo com o valor da espécie, pela média de despesas com cada ave, o tempo que ficou em depósito, o capital empregado, a remuneração do pessoal e o pro-labore dos dirigentes ou responsáveis pelo empreendimento, além das despesas indiretas, como fornecimento de água e energia elétrica, combustível, impostos e outros encargos, sem olvidar a necessidade de expansão do empreendimento. Todavia sua receita não seria tributada, em razão da natureza do serviço prestado.

Um banco de dados teria cadastrado todos os animais apreendidos, todas ocorrências e a destinação dos sobreviventes. Concomitantemente seriam cadastradas todas as espécies e respectivos interessados, comprovada a capacidade de cada um.

Recebida uma denúncia ou em posse de qualquer informação sobre aves canoras ou ornamentais em poder do tráfico, o alojamento comunicaria de imediato a autoridade competente, ou esta ‘aquele, para uma ação conjunta, quando o pessoal do alojamento já estaria no local no momento imediato após a apreensão para as providências necessárias.

Prestados os primeiros socorros, aguardar-se-ia a liberação e tão logo fosse possível as aves seriam encaminhadas ao alojamento onde seriam separadas na forma já descrita. Constatada pela autoridade competente a existência de aves consideradas inaptas para a soltura, estas, após examinadas, marcadas e devidamente tratadas ficariam ‘a disposição dos interessados por aquelas espécies, que seriam avisados para se apresentarem, conforme critérios previamente estabelecidos. Paga a tarifa esses interessados poderiam retirar as aves de seu interesse, receberia um documento de posse e ficaria obrigado a prestar conta anualmente ‘a autoridade competente sobre a situação geral das aves recebidas.

Assim organizadas, as apreensões dariam uma solução rápida e eficaz ao sofrimento, com cuidados e tratamentos urgentes para mitigar a dor, a sede e a fome, depois um tratamento mais minucioso visando a cura de lesões e a eliminação de doenças, de forma que pudessem ser soltas ou repassadas totalmente livres de parasitas e doenças.

Haveria, assim, um tratamento digno e humano e uma destinação adequada e transparente das aves apreendidas.

Enfim a preservação do patrimônio genético.

Essas medidas não podem ficar enternamente no papel. Vontade, ação e pressa são imprescindíveis.

O cadastramento dos interessados nas páginas da COBRAP, do IBAMA e de outras entidades seria uma medida de importante divulgação e muita ajuda em todo o processo.

Caberia estudar também a possibilidade de lançar nos dados do RENAVES os pássaros transferidos e os respectivos detentores.

A proposta de cadastrar interessados no portal da COBRAP, para receber aves apreendidas, é uma iniciativa digna dos mais efusivos louvores, muito importante como medida de urgência, mas eu penso que não deve ser definitiva, pois temo que por mais que se faça somente através da COBRAP, muito pouco estará sendo feito e muito mais restará a fazer para a solução definitiva do problema.

A proposta ora apresentada pode parecer inviável, difícil de se instalar e de se manter, por falta de recursos ou de interessados, pois parece uma medida antieconômica, de muitas despesas e pouco retorno. Eu mesmo, confesso, tive muitas dúvidas em apresentar ou não a proposta. Mas considerando os vultosos números divulgados sobre o tráfico, em quantidade de aves, mercado e movimentação financeira, com uma tarifa justa essa atividade pode se manter e até se expandir, e ainda concorrer com o tráfico, podendo o interessado obter e reproduzir as aves que desejar com o pagamento de uma tarifa inferior ao preço do traficante, com a segurança de estar de posse de um animal saudável e legal.

Ora, se temos aves legais de R$ 1.500,00, 3.000,00, 6.000,00, 12.000,00; se temos nas feiras aves ilegais de R$ 10,00, 20,00, 30,00; mas se é verdade que também temos aves comercializadas ilegalmente pelos traficantes a R$ 3.000,00, 5.000,00, 10.000,00, 15.000,00, seja para o tráfico interno, seja para o exterior; se é verdade que no Brasil o tráfico movimenta milhões de dólares, com uma tarifa proporcional o empreendimento se manteria tranqüilamente, até com reservas para expansão ou instalação de novas unidades do modelo. Ou então os números divulgados não são verdadeiros.

Evidentemente muitos ajustes terão de ser feitos durante a execução do projeto, mas nada que a criatividade da nossa gente não possa resolver.

Escrito por Valdemir Roberto Barros, em 2/9/2003