Quando a população toma o partido do tráfico

Necessidade de sobrevivência

Separar cidadãos comuns de traficantes é uma das tarefas mais importantes (e complexas) do combate ao comércio ilegal de animais e plantas.

– Mais de vinte medidas políticas e policiais estão entre as recomendações gerais do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Tráfico de Animais e Plantas Silvestres, divulgado há alguns dias. Leis mais rigorosas, monitoramento, combate à corrupção em órgãos de fiscalização, meios para investigar denúncias, agentes especializados, parcerias entre fiscais, polícia e entidades não governamentais são algumas das recomendações mais previsíveis.

O diferencial surge com recomendações que, à primeira vista, parecem estar no relatório errado, como acelerar a realização de zoneamento-econômico ecológico nos estados e a formulação de uma estratégia ampla de desenvolvimento regional para a atuação governamental na Amazônia. Aí estão embutidas propostas de mudanças mais abrangentes, que inserem componentes culturais e econômicos na discussão.

Como no caso do tráfico de drogas, para colocar freios no tráfico de animais e plantas silvestres é preciso, primeiro, separar o cidadão comum do traficante. E prever procedimentos diferentes em relação a um e outro. Conforme consta do relatório da CPI, “os problemas de degradação ambiental não podem ser enfrentados de forma isolada”.

Em todos os grandes ecossistemas brasileiros há uma pequena parcela da população, que não tem outra alternativa econômica, senão servir de base para o tráfico, capturando animais e coletando plantas em troca de pagamentos irrisórios. Criar alternativas de renda para esta parcela da população – que fossem sustentáveis, do ponto de vista social econômico e ambiental – já seria quebrar uma perna do tráfico, hoje uma atividade muito lucrativa, justamente porque se aproveita da falta de opções da pobreza.

O zoneamento econômico-ecológico e a estratégia de desenvolvimento regional são (ou deveriam ser) instrumentos desta sustentabilidade. Assim como o ordenamento territorial de áreas recentes de expansão da fronteira econômica, também sugerido no relatório.

Estas medidas amplas devem ser complementadas com as propostas mais específicas para o tráfico de animais, que constam no documento, como linhas de financiamentos para criadouros comunitários nas localidades de onde hoje saem exemplares retirados da natureza e agilização da documentação necessária para o estabelecimento de criadouros legais, hoje travados pela burocracia.

E aí entra uma outra relação viciosa entre população e traficantes, tão importante quanto difícil de ser modificada: a cumplicidade.

No Brasil, o mascote de fauna silvestre já existia nas aldeias indígenas antes do Descobrimento, embarcou nas caravelas, entrou nas casas das primeiras fazendas e se espalhou pelas cidades, onde continua existindo, por maiores que sejam as metrópoles atuais. É um componente cultural do brasileiro.

Diante da História da população com seus mascotes silvestres – macacos, sagüis, papagaios, araras, passarinhos, jabutis e mesmo felinos – a ilegalidade é extremamente recente. Em alguns casos, o animal já era um membro da família, quando se tornou ilegal manter exemplares da fauna silvestre em casa. Em muitos outros casos, o animal foi comprado sem que o comprador soubesse que era ilegal e, depois, a impossibilidade de regularização manteve o comprador na ilegalidade. E há, também, uma parcela da população, que coloca a companhia de um mascote acima do risco de ser flagrado infringindo a lei.

Em outras palavras, toda esta gente – das aldeias indígenas à metrópoles – é empurrada para a cumplicidade com os traficantes. Porque a lei trata do mesmo modo os dois. Porque são os traficantes que “arrumam” o animal para o futuro dono. E porque a polícia ambiental é obrigada a perder tempo com denúncias da arara no quintal ao lado, mesmo sabendo que a denúncia é motivada por desavenças entre vizinhos ou incômodo com o barulho/cheiro/sujeira e não pela preocupação com a conservação da biodiversidade ou a saúde do animal em cativeiro.

Para que esta população deixe de tomar o partido do traficante e se coloque do lado da polícia, é necessário criar oportunidades de regularização dos mascotes e, sobretudo, de criação de animais nativos para comercialização legal. Se a população não precisar mais se abastecer no tráfico, se não for mais denunciada apenas por ter uma arara no quintal, então, a polícia e os órgãos de fiscalização poderão deixar o varejo e se ocupar com o atacado, que é o crime organizado, com graves impactos sobre a biodiversidade brasileira. Passarão a ter na população não mais cúmplices silenciosos dos traficantes, mas uma rede de fiscais mais eficiente do que qualquer uma, que o dinheiro público possa montar.

Estadão – 06.02.2003

Escrito por Liana John, em 2/9/2003