Rituais de Comportamento

Procriação de canário-da-terra

RITUAIS DE COMPORTAMENTO NA PROCRIAÇÃO DO CANÁRIO-DA-TERRA

Paulo Rui de Camargo

Para lograr sucesso na reprodução do canário-da-terra, em ambiente artificial, é fundamental a observância de algumas regras básicas.

Elas podem ser resumidas nos seguintes pontos: escolha das matrizes envolvidas na reprodução, higienização, instalações adequadas, atendimento a necessidades espaciais, dieta balanceada, questões do meio ambiente (ciclo de iluminação, temperatura, umidade, renovação do ar), bem como a saúde dos reprodutores. Outro ponto importante: propiciar ao casal um ambiente onde possa sentir segurança para realização do ato reprodutivo.

Até mesmo noções básicas de Sociobiologia o criador deve ter, na medida em que o estudo sistemático das bases biológicas de todo o comportamento social leva a interessantes observações. A Sociobiologia tem suas raízes na Teoria da Evolução, Etologia, Psicologia Fisiológica, Genética das Populações e Ecologia. O estudo do comportamento social abrange, inclusive, as adaptações de comportamento. Por isso, os estudos do comportamento dos animais têm grande importância para melhor se entender como acontecem os processos criatórios, quer na Natureza, quer em regime de domesticidade.

Durante muito tempo, o homem vem procurando estudar as características comportamentais das aves em geral. Estes estudos foram sendo vetoriados, tanto em trabalhos de campo, como em pesquisas levadas a efeito em cativeiro.

Por muitos anos, o comportamento dos animais foi considerado de importância secundária, segundo explica o Professor PAULO NOGUEIRA NETO, se comparado a outros aspectos da Zoologia, como a Taxonomia (classificação), Fisiologia (funcionamento) e Parasitologia (médica) etc. (vide “Notas sobre Aspectos Ecoetológicos de alguns Columbidae e Psittacidade (Aves) Indígenas” – tese de livre docência; Instituto de Biociências USP, São Paulo – 1980 – pág. 11).

Este notável cientista, que já foi Secretário Especial do Meio Ambiente, esclarece que o estudo do comportamento animal, em relação com o ambiente natural, é tratado pela Etologia. Este ilustre Professor, no entanto, chama a atenção para um ponto importante, ao dizer que este ramo da ciência seria mais corretamente denominado de Ecoetologia (termo por ele criado), pois ela trataria das inter-relações Ambiente-Animal e vice-versa, fato este que, aliás, é constatado diuturnamente, já que o ambiente tem, realmente, uma interação com os padrões de comportamento dos animais, que se adaptam e se ajustam ao mundo ambiental em que vivem. NOGUEIRA NETO arremata o ensinamento, elucidando que “também a base genética desses padrões de comportamento é devida à seleção natural, imposta pelo meio ambiente, no decurso da evolução. Portanto, o meio ambiente está na base, tanto do comportamento inato, como no adquirido”.

Muito já se discutiu sobre estes atos, denominados inatos ou instintivos e aqueles chamados de aprendidos ou adquiridos. Ainda hoje persistem algumas controvérsias a respeito, sobre as diferenças entre estes dois tipos de comportamento.

Com o correr dos tempos, os estudos comportamentais tiveram acentuado incremento, especialmente nos idos dos anos 1960, prosseguindo até a década dos anos 1970. Por meio destas pesquisas, ficou apurado que muitos comportamentos dos animais aproximavam-se ou tinham certas similitudes com alguns comportamentos humanos. Recentes estudos científicos, em vários campos de pesquisa experimental, demonstram que as fronteiras entre o comportamento das espécies (humana e animal) apresentam-se cada vez mais tênues.

Hoje em dia, muitos ornitófilos já dominam as técnicas básicas de criação do canário-da-terra.

Todavia, ainda faltam muitas observações e dados técnico-científicos, inclusive sobre os comportamentos ritualísticos deste pássaro, na época reprodutiva.

Em relação a algumas balizas de comportamento apresentadas pelos canários-da-terra, nos períodos reprodutivos, destaco as seguintes:

 

COMPORTAMENTO DE CORTEJO

Este comportamento consta de rituais de representação corpórea e vocalização típicas.

Quando os machos desejam cortejar suas parceiras, eles assumem uma postura específica: levantam a cabeça, inclinando-a para trás, fazendo com que ela quase encoste no dorso. Com a cabeça flexionada para trás, o bico permanece quase em posição vertical. Concomitantemente, a rabadilha é levantada no sentido perpendicular, ficando a cauda quase fechada, não se abrindo em leque. As duas asas são abertas ligeiramente, afastadas do corpo e em posição baixa. Como geralmente este tipo de comportamento é ritualizado pelos machos no fundo da gaiola, as asas chegam a esbarrar no chão. Nestas ocasiões, os machos entreabrem o bico, emitindo um canto corrido, com timbre muito fino, melodioso, que parece ter o condão de apaziguar as fêmeas. Ao mesmo tempo em que este canto é emitido, os machos tremulam as asas, em movimentos rápidos, eriçam as penas do topo da cabeça e da garganta (ficam avolumadas) e flexionam os tarsos, abaixando o corpo, fazendo com que a barriga encoste no piso da gaiola.

 

AGRESSIVIDADE TERRITORIAL

Durante o ciclo de reprodução, o instinto agressivo territorial exterioriza-se nitidamente nos machos adultos de canário-da-terra. Pássaros que, alguns dias antes, pareciam quietos e calmos, quando acasalados e na época reprodutiva, passam a demonstrar um comportamento agitado, violento e belicoso, em relação a outros machos de sua espécie.

Isto faz parte do instinto agressivo territorial, transformando o canário-da-terra num aguerrido guardião, que protege, de modo cioso, o “seu” território. Este é um comportamento típico, um instinto atávico, tão arraigado que parece superar o instinto de acasalamento e de criação dos filhotes.

Durante muitos anos lidando com esta espécie de pássaro e observando centenas de casais em meu aviário, pude notar que este instinto é muito pronunciado nos machos, em época reprodutiva.

Quando, por acaso, algum macho-reprodutor consegue escapulir de seu viveiro (e permanece nos arredores), quase sempre retorna ao local onde estão posicionados os viveiros ou gaiolas-criadeiras. Acontece que, ao regressar, não volve especificamente para a sua própria gaiola (onde está sua fêmea e seus filhotes), mas se dirige em direção a outras gaiolas contíguas ou próximos à sua, para brigar com outros machos, considerados rivais. Nestas ocasiões, pode-se inferir que o instinto agressivo territorial é um componente comportamental realmente muito forte, pois o pássaro procura antes defender seus domínios, expulsar possíveis competidores de sua própria espécie, do que voltar ao convívio de sua fêmea e de seus filhotes.

Este é outro comportamento instintivo que deve ser rigorosamente observado por aqueles que pretendem criar canários-da-terra.

 

AGITAÇÃO DA CAUDA

Quando um macho exibe-se em cortejos (na época da gala), pode apresentar uma ritualidade sexual, consistente em agitar, de forma rápida, a cauda, movimentando-a de um lado para outro. Nestas circunstâncias, costuma voar e corruchiar em torno da companheira, como que realizando uma espécie de acrobacia exibicionista.

Esta tremulação, este movimento de agitar a rabadilha, de um lado para outro, pode também representar um comportamento agressivo. Isto é observado, quando um macho (“femeado” e de fibra) tem sua gaiola colocada em frente a uma outra, também de um macho valente. Nesta ocasião, os machos-reprodutores podem executar uma exibição de ostensiva agressividade, movimentando e levantando a cauda de forma contínua e rápida.

Este é outro comportamento inato, muito chamativo e que propicia ao criador a oportunidade de selecionar um reprodutor que já se encontra “pronto” para o ato reprodutivo.

 

COMPORTAMENTO DE GALANTEIO

A maioria das fêmeas, já acasaladas, parecem ter uma pseudo dominância sobre os machos, com quem estão aparelhadas. Isto se observa no momento de comer e beber. Elas costumam ter prioridade neste momento. Os machos se afastam, cedendo lugar no bebedouro, no cocho de sementes ou nos outros recipientes de comida.

É curioso verificar que o fato deles se afastarem, sem que ocorra briga, ou mesmo qualquer outra atitude hostil, não implica em submissão, ou sequer subserviência destes machos. Penso que não se pode dizer, neste caso, que as fêmeas estejam a “dominar” os machos, apesar de eles cederem esta primazia, na medida em que esta postura de “cortesia” e “cavalheirismo” está relacionada eventualmente à própria complementação do comportamento de galanteio, em função do instinto sexual, ainda acentuado.

 

Registre-se que, por mais que os rituais de comportamento e jogos de sedução entre os parceiros possam parecer desregrados, casuais, espontâneos e livres, estes gestos acabam obedecendo a leis físicas e fisiológicas das quais não se pode fugir.

É gratificante observar as conexões existentes, tanto nas vocalizações (o canto ou linguagem sonora), como nos rituais de apresentação comportamental (ligados a função sexual durante o processo de acasalamento e gala) e que resultam em significativa influência na procriação desta apreciada ave canora.

Novembro de 2001

O autor é 1º Diretor de Criação de Canário-daTerra da COBRAP