Pássaros Bicudo e Curió
CANTO Grandes Cantadores do Brasil
O bicudo Oryzoborus crassitrostris, com nove subspécies, e o curió Oryzoborus angolensis, com três subspécies, são aves originárias da América do Sul e Central, notadamente das regiões onde a temperatura varia de 25 a 35 graus centígrados no verão. Essas regiões estão compreendidas do norte da Argentina até o México. Vivem nos brejos, mangues, capões de matos, beiras de rios e de lagoas, onde haja o capim-navalha (Hypolytrum pungens) ou navalha-de-macaco (Hypolytrum schraerianum ) ou a tiririca ou navalha-de-mico (Cyperus rotundus) seu alimento básico na natureza.
Os pássaros deste Gênero caracterizam-se por terem o bico robusto e cônico, próprio para esmagar sementes. Os olhos, as pernas e os pés são enegrecidos. São três dedos muito flexíveis para a frente e um para trás. Em suas extremidades apresentam unhas afiadas e um tanto curvas nas pontas, apropriadas para agarrarem-se aos ramos finos dos capins.
São pássaros canoros considerados dos mais nobres; o bicudo imita o som de uma flauta e o curió de um violino. A frase musical varia de 15 a 20 notas “com portamento” e de muita maviosidade e cadência, uma verdadeira sinfonia. Na opinião de muitos conhecedores são, dentre as aves, os melhores cantores que a natureza produziu. É impressionante observar a maviosidade e o volume do som que conseguem produzir, dispondo de uma siringe tão pequena. Costumam ficar com o rabo abaixado e o peito para a frente, em posição ereta, para ressaltarem a sua aparência de guerreiros. Os movimentos são compassados e harmoniosos. Possuem campos de visão e de audição muito aguçados. A velocidade durante o vôo é muito rápida, favorecida pela envergadura e tamanho das asas, do rabo e o pouco peso em relação à dimensão do corpo. Vivem sempre em casais, à exceção no outono, quando, junto com os filhotes, formam bandos com outros companheiros nascidos e resi-dentes nas proximidades. Podem ser vistos ou ouvidos de muito longe nos locais onde habitam, tanto pela altura do canto como pelo costume de pousar no último galho da árvore mais alta da sua área geográfica. Esta posição estratégica lhes dá condição também de avistar e patru-lhar todo o território.
São monogâmicos e territorialistas, procriam pouco na natureza, dois ovos de cada vez. O casal de bicudo e o casal de curió estão sempre juntos respectivamente. Macho e fêmea voam sempre um atrás do outro, procurando não se separar muito, embora dentro do território às vezes se afastem um pouco, mas continuam sempre se comuni-cando através dos piados e do canto. Os machos do bicudo e do curió adultos, quando voam, exibem o espelho branco da parte interna das penas das asas, porque possuem uma mancha branca, redonda e simétrica, de mais ou menos um centímetro no centro de cada asa. Esse espéculo alar é conhecido por «mosca branca». O bicudo é um pouco maior e todo preto com o bico de variadas cores. O curió, também preto, tem uma colocação cor de vinho no abdomem e o bico quase sempre preto, podendo ter partes da cor branca. As fêmeas por toda a vida e os filhotes até um ano possuem as penas marrom cor de terra..
Além disso, têm por hábito resolver desavenças pelo sistema de disputa em duetos de canto antes de ir para as vias de fato. O medroso se intimida só de ouvir o cantar de outro macho mais valente a uma distância próxima. São vigilantes e alertas, movimentam-se muito pelo território. Procuram estar sempre nos lugares onde possam avistar as fêmeas. Elas se preocupam mais com o ninho e com as coisas que acon-tecem por perto. Sabem que qualquer fato grave será detecta-do pelo seu «valente» marido. Ficam mais escondidas e protegidas, nas partes baixas das ramagens do hábitat.
Em situação normal, o acasalamento se dá de forma tranqüila. De-pois da migração temporária da época da muda e do inverno voltam aos seus territórios, no início da primavera, e o macho novamente corteja a mesma fêmea. Como já se conheciam, o entrosa-mento é rápido e fácil. Logo em seguida iniciam a reprodução.
A agressividade dos bicudos e dos curiós é muito grande. Uma outra característica marcante é a grande diferença de comportamento individual entre eles. Os machos costumam brigar violentamente com as fêmeas quando estão enciumados. Não permitem de maneira alguma a presença de pássaros, mesmo de maior porte, por perto de seus ninhos, notadamente quando estão com filhotes. Um curió enfrenta com coragem um bicudo muito maior, se sentir algum tipo de ameaça. Não hesitam em sacrificar a própria vida para defender sua família.
Na natureza, em estado selvagem, vivem muito pouco, por volta de dez anos no máximo. Isto é comprovado pela experiência de passarinheiros mais antigos, da época em que não era ilegal a captura de animais silvestres no Brasil. Dizem eles que quase todos os pássaros aprisionados e que eram encontrados em regiões ainda não exploradas, possuíam pouca idade.
O território, hábitat dos bicudos e curiós, está sempre perto de lugares onde há água limpa e abundante. Em geral, essas localidades possuem densa vegetação de arbustos de baixa altura, alternados de lugares limpos compostos só de capim navalha, de muita ventilação, muita umidade, muito sol e muito calor. Na época da muda ficam escondidos no meio das matas e não cantam. Como vimos, são muito exigentes com os hábitats na natureza.
Ambientes silvestres adequados, para esses pássaros, estão ficando cada vez mais escassos e difíceis de serem encontrados. O pior é que não há como convencer ninguém de que as vegetações naturais de terras de baixadas, brejos e várzeas devem ser preservadas, porque justamente são as áreas mais férteis e muito procuradas para o desenvolvimento de lavouras racionais de cereais.
Daí não é difícil prever que a solução não pode ser outra senão a homologação cada vez maior de parques nacionais e a reprodução em larga escala nos ambientes domésticos. Dessa forma se poderá, em breve, fazer-se repovoamento a partir de exemplares de criação. No Brasil, este tipo de criação iniciou-se na década de 80 e hoje, cerca de 15 anos depois, podemos dizer que essas duas aves estão livres da extinção em face da larga reprodução doméstica. O bicudo certamente já pode ser retirado da citação do CITES 1- como uma das aves ameaçadas de extinção.Tornou-se uma verdadeira paixão a respectiva criação; são milhares de aficionados que participam dos torneios de canto em centenas de cidades brasileiras. Com esse nível de interesse, há criadores que estão conseguindo a reprodução em escala de produção industrial para abastecer o mercado sempre crescente. Extrai-se de cada fêmea matriz, em gaiolas do padrão para criar o canário doméstico, cerca de 10/12 filhotes anuais, marca que não pode ser atingida na natureza pe-las condições desfavoráveis de nutrição. Domesticamente são alimentados facilmente com alpiste, painço, arroz em casca e rações balanceadas e outros produtos encontrados no mercado.
A verdade é que grande parte de ornitofilistas brasileiros, que outrora se dedicavam a reproduzir espécies alienígenas, estão passando por um processo de mudança e alterando sua criação para aves indígenas brasileiras. Nessa linha e nessa progressão, dentro de pouco tempo, os órgãos interessados e os passarinheiros, após a separação de uma área de terra própria para criar em estado natural, poderão, enfim, obter a preservação em estado selvagem do bicudo e do curió através da reintrodução monitorada.
O fator financeiro também é muito importante. É óbvio que sim. Um bicudo ou um curió campeão e de canto perfeito vale muito dinheiro. Todos querem ter ou produzir um. Isso serve de estímulo para que muitos sejam incentivados e passem a exercer a procriação com mais afinco e dedicação. Como uma atividade nova, iniciada recentemente, tem sido muito importante, para o Brasil produzir-se uma ave nativa para fornecimento a outro criador, sem que ela seja capturada na natureza. São ações que têm merecido elogios e o apoio inclusive do IBAMA (órgão que cuida do meio-ambiente no Brasil). Assim é que a legislação atual permite que se transacione os filhotes e possibilita obter-se lucro com uma dignificante tarefa.
Por isso é que hoje os Criadouros Comerciais estão surgindo, par e passo, para que se possa incrementar a comercialização legal, inclusive para exportação. Então, acredita-se que esses pássaros serão solicitados por criadores de mundo inteiro pelos seus predicados de aves de lindo canto e de pequeno tamanho, bem como valentes e cantadores e que possuem diferenças individuais de comportamento muito acentuadas.
Outra questão importante é a seleção genética; o passarinheiro tem consciência disso. Dessa forma busca-se sempre melhorar o padrão de suas aves através de cruzamentos de aves diferenciadas. Nessa tarefa até que as coisas são facilitadas por um fator natural. As aves covardes, problemáticas e de qualidade inferior dificilmente procriam em ambiente doméstico. Esse fato, por si só, já provoca uma melhoria na qualidade do plantel. Os criadores sempre procuram, para reprodução, pássaros valentes campeões, do canto bonito e que repete a frase musical muitas vezes sem interrupções. A sorte é que, em ambiente doméstico, vivem muito: o bicudo 40 anos e o curió 30. Assim, o criador pode criar uma linhagem a partir de um só pássaro macho campeão aposentado. Essa matriz poderá cruzar com várias fêmeas e gerar um sem números de filhotes de boa qualidade. Como em todos os outros animais produzidos pelo homem, o bicudo e curió domésticos têm-se mostrado muito superior ao seu irmão selvagem, justamente pela manipulação genética que se faz em busca da perfeição. Fato que tem colaborado muitíssimo no combate à comercialização ilegal e à caça predatória. Rapidamente os interessados estão percebendo que o pássaro criado, filho de campeão, tem muito mais qualidade. Vale a pena conhecer-se esse belo trabalho que inúmeros criadores brasileiros estão efetivamente praticando pela preservação de suas espécies nativas, especialmente dos maravilhosos bicudo e curió, dádivas da natureza.
Escrito por Aloísio Pacini Tostes, em 2/9/2003