Regime Jurídico dos Pássaros Nativos

A correta conceituação

O REGIME JURÍDICO DAS AVES NATIVAS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE

Allan Helber de Oliveira [1]

INTRODUÇÃO

O presente texto tem por objetivo tecer algumas considerações acerca do tratamento normativo, tanto no marco constitucional quanto da legislação ordinária, que rege o tema de aves da fauna nativa brasileira. Esta discussão é justificada, em primeiro lugar, pela assombrosa desinformação que reina tanto perante os criadores, principalmente de passeriformes, como também dos próprios órgãos públicos de controle do meio ambiente. Esse panorama de desconhecimento termina por propiciar o surgimento de “dogmas” e “mitos” acerca do regime jurídico de tais espécimes. Um deles, repetido pela grande maioria dos criadores, é o de que as aves mantidas em criatórios legalizados são de propriedade da União, que outorga aos criadores o simples título de “depositários” destes bens.

Este trabalho pretende apresentar elementos que possam contribuir para uma “desconstrução” racional e esclarecida desta e de outras teses igualmente equivocadas que habitualmente são divulgadas acerca do regime jurídico das aves nativas.

O MEIO AMBIENTE NA CF 88

A Constituição Federal de 1988 trata de várias matérias que anteriormente estavam relegadas à esfera das simples leis. A defesa do meio ambiente é um dos vários tópicos que, a partir daquele ano, passaram a estar disciplinados não apenas em LEI, mas na própria CONSTITUIÇÃO. Desse modo, segundo a CF 88, é competência da União, dos Estados, dos Municípios e do DF desenvolver políticas públicas para a defesa do meio ambiente (art. 23, VI). A própria criação do IBAMA, portanto, é demonstração do cumprimento desse dispositivo constitucional. A CF diz ainda quem pode legislar em matéria de meio ambiente. Em matéria de fauna e de proteção ao meio ambiente, a União deve estabelecer as chamadas regras gerais e os Estados poderão estabelecer suas leis próprias, sempre obedecendo às regras gerais da lei federal (art. 24, VI).

Outro mérito da Constituição de 1988 está em reconhecer que o direito ao meio ambiente é um direito difuso (art. 225). A idéia de direito difuso remonta à teoria contemporânea do direito, que encontra no Código de Defesa do Consumidor um importante repositório conceitual. Segundo a Lei nº 8.078/90, são direitos difusos aqueles transindividuais, de natureza indivisível e com titulares indeterminados que estão unidos por circunstâncias de fato. Desse modo, direito difuso é aquele que se manifesta como uma prerrogativa inerente a uma pluralidade indeterminada de pessoas, que, por definição, dela usufruem também de modo coletivo. Toda a sociedade tem direito a gozar de um meio ambiente preservado, protegido e não poluído. Trata-se de um direito difuso.

Um dos aspectos mais importantes da discussão sobre os direitos difusos está na relação que eles podem chegar a estabelecer com os direitos individuais do ser humano. Alguém pode ser proprietário de terras e, por tal motivo, ter o direito de explorá-las rentavelmente (algo que também é protegido pela Constituição). Essa faculdade (direito individual), porém, não pode chegar a violar o direito difuso que toda a sociedade tem ao meio ambiente conservado. Desse modo, a intervenção do proprietário de terras em suas próprias glebas deverá observar regras relativas à manutenção de reservas florestais, de preservação de fontes de água e de espécies silvestres. O direito à propriedade e à sua exploração é do proprietário, mas TODA A SOCIEDADE tem o direito à preservação do meio ambiente naquelas terras. Assim, o fazendeiro e a indústria que desrespeitam a lei e destroem o meio ambiente estão lesando um direito que não é do Estado ou só daqueles que vão sofrer imediatamente tais impactos, mas sim de toda a sociedade.

Na Constituição não existe menção expressa às aves brasileiras. Elas estão enquadradas em um grupo maior e mais genérico: a fauna brasileira.

A LEI Nº 5.197/67 E AS AVES DE DOMÍNIO DA UNIÃO FEDERAL

Abaixo da Constituição existem várias leis que regulamentam a proteção ao meio ambiente e, mais especificamente, disciplinam o tema da fauna brasileira.

Uma das mais importantes delas segue sendo a chamada Lei de Proteção à Fauna ou Código de Caça (Lei nº 5.197/67), que praticamente aboliu a caça em todo o Brasil (revogando o verdadeiro “Código de Caça”, Decreto-Lei nº 5.894/43). Apesar de promulgada antes da CF 88, a mencionada Lei segue em vigor nos dias de hoje, naquilo que não colide com a Constituição ou com a legislação ordinária posterior.

Para os fins do presente trabalho, o que há de importante nesta Lei é a definição de que a União Federal é a proprietária dos animais que componham a “fauna silvestre” brasileira (art. 1º):

“Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e QUE VIVEM NATURALMENTE FORA DO CATIVEIRO, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha” (grifou-se).

É importante advertir que esse dispositivo, num primeiro instante, pretende dirigir-se exclusivamente aos exemplares que vivam ou tenham vivido durante parte de sua existência LIVRES NA NATUREZA.

Conclui-se, assim, que o sabiá que vive solto no campo é um bem de propriedade da União Federal, assim como o bem-te-vi que vaga pelas cidades brasileiras. Até mesmo um exemplar do uirapuru que habite a Amazônia e jamais tenha sido visto pelo olhar humano é propriedade da União Federal (note-se agora a riqueza de facetas dessa questão: o uirapuru mateiro é de PROPRIEDADE da União, embora, ao mesmo tempo, toda a sociedade tenha direito à sua preservação, um DIREITO DIFUSO).

Um bem que pertença à União Federal é, segundo o Código Civil, um “bem público” (art. 98).

A ave silvestre permanece sendo um bem público mesmo depois de capturada, seja de forma autorizada ou não. Desse modo, a graúna que cair num alçapão clandestino e for parar numa gaiola permanecerá sendo bem público, de propriedade da União Federal. Nem mesmo o tempo é capaz de alterar esse status jurídico: por mais que o papagaio caçado sobreviva 30, 40 anos em cativeiro, ele prosseguirá sendo um bem público até o último dia de sua vida. Convém realçar inclusive que o bem público não pode ser adquirido por usucapião (art. 102, do Código Civil).

Apesar de não incluído no conceito inicial de aves que componham o patrimônio da União Federal, deverá também ser considerado bem público o filhote da ave silvestre que nascer no cativeiro clandestino. O proprietário de um bem tem direito a seus frutos (art. 1232, do Código Civil). Logo, se a ave da União tem um filhote, este pertence também à União. O ato de captura ilegal, praticado pelo caçador clandestino, não pode ser capaz de gerar nenhum direito em seu benefício.

A CAPTURA AUTORIZADA PELA LEI Nº 5.197/67

Embora a Lei nº 5.197/67 tivesse um caráter repressivo da caça, esta ficou ressalvada em alguns de seus dispositivos. Assim, sempre que a peculiaridade regional permitisse, a caça poderia ser autorizada (art. 1º, §1º). Por outro lado, o poder público poderia ainda autorizar a apanha de ovos e filhotes de animais da fauna silvestre pelos estabelecimentos previamente legalizados (art. 3º, §2º). Estes estabelecimentos estariam inclusive autorizados a comercializar exemplares da fauna silvestre (art. 3º, §1º).

A Lei ainda foi mais longe e determinou que o poder público deveria estimular a construção de criadouros destinados à criação de animais nativos para fins econômicos e industriais (art. 6º, ‘b’).

Segundo essa lógica, o órgão de proteção da fauna criado pela União Federal deveria publicar anualmente a lista de espécies cuja apanha estaria permitida pelos estabelecimentos legalizados, com menção das respectivas áreas geográficas dessa atividade, da época e do número de exemplares autorizado por espécie (art. 8º). Assim, desde a promulgação da Lei nº 5.197/67, a captura de animais silvestres apenas pôde ser considerada lícita quando seguidas tais diretrizes (art. 9º).

A ave silvestre aprisionada pelo homem, mesmo mediante autorização do poder público na forma da Lei nº 5.197/67, permanece sendo um bem de propriedade da União. É que apesar de permitir sob certas circunstâncias a apanha, a Lei não chegou a inovar e estabelecer que o animal apanhado de modo autorizado passasse a ser da titularidade de seu caçador. Portanto, o criador que tivesse acesso a aves capturadas pela via legal nem por isso se tornava seu proprietário. Sua condição é de mero possuidor do bem [2].

Na atualidade, tal dispositivo – pelo menos em relação aos passeriformes – tem um significado quase exclusivo de reminiscência histórica. É que, de um lado, a elevada degradação do meio ambiente desencoraja a autorização da captura. Por outro, esta se tornou desnecessária: os plantéis legalizados, hoje, estão suficientemente desenvolvidos e se tornaram auto-sustentáveis. Por fim, todo o acervo de animais que porventura pudesse ser necessário para o desenvolvimento de qualquer política pública (e que por isso poderia ter sua caça autorizada) acaba, desgraçadamente, vindo parar nas mãos do poder público mediante a apreensão realizada pelos órgãos de repressão à caça clandestina. Infelizmente, o número de animais caçados furtivamente é tão grande que o produto da apreensão – já descontadas as mortes ocorridas durante a captura, durante o transporte e, depois, durante o período de depósito nos órgãos públicos – basta para prover qualquer programa preservacionista.

O CONCEITO DE AVE NATIVA

A Lei nº 5.197/67 tentou conceituar o animal “silvestre”, assim considerado aquele que vive naturalmente fora do cativeiro. A definição, porém, foi incompleta, dentre outros porque não se demarcou de modo expresso o aspecto territorial para que o animal pudesse ser considerado silvestre brasileiro (art. 1º). Uma leitura literal do dispositivo poderia dar a entender que o urso que nascesse livre numa floresta da América do Norte seria “fauna silvestre” e pertenceria à União Federal.

Mais recentemente, a Lei nº 9.605/98 complementou essa definição e estipulou que, além das circunstâncias do art. 1º da Lei n. 5.197/67, o animal, para ser considerado da “fauna silvestre”, deve ainda pertencer às espécies nativas (inclusive migratórias) que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida no território brasileiro ou em suas águas (art. 29, §3º).

A definição legal, entretanto, não reflete ainda a verdadeira situação jurídica dos animais que compõem a fauna nacional e, por tal motivo, ficou aquém daquela desejada pelos criadores autorizados de aves da fauna brasileira.

É que o vocábulo “silvestre” aponta obviamente a idéia de animal da “selva”. A palavra tem origem no latim, silvester e silvestris, reportando a algo que seja “da floresta”, “do mato”. E nem sempre o exemplar de animal cuja espécie componha a fauna brasileira poderá ser considerado literalmente “silvestre”. As crias de animais devidamente legalizados e mantidos por criadores não são verdadeiramente silvestres, porque nunca viveram no ambiente natural que compõe seu habitat.

Daí a conclusão de que, a rigor, apenas pode ser animal silvestre aquele que tenha vivido ou tivesse que ter vivido livre no meio ambiente (considerado neste segundo caso aquele capturado ilegalmente). O filhote nascido em criatório, em circunstâncias legais, não pode ser enquadrado como animal silvestre. A ele deve ser reservada a condição de exemplar da FAUNA NATIVA, mas não a de fauna silvestre. A partir desse raciocínio surge o conceito de AVE NATIVA BRASILEIRA, em contraponto à AVE SILVESTRE BRASILEIRA. Ambas são da fauna nacional. Entretanto, a ave silvestre é aquela que vive, tenha vivido ou deveria viver livre no seu habitat natural, enquanto a ave nativa é aquela que, nada obstante integrar o rol de espécies oriundas da fauna brasileira, nasceu em criatório legalizado.

Esta divisão da fauna nacional em duas categorias distintas apenas se torna mais clara a partir da intervenção dos criadores de animais nativos (sobretudo aves), que reivindicam o reconhecimento do status diferenciado que devem ter os exemplares brasileiros não capturados da natureza, mas reproduzidos de modo organizado e autorizado nos criatórios devidamente registrados. Essa divisão tem inclusive um aspecto valorativo e moral a ser levado em consideração: é necessário que a sociedade compreenda que o criador de aves legalizado é um parceiro dos órgãos de preservação do meio ambiente e, sobretudo, um agente preservacionista da fauna brasileira. Ele garante não apenas a vida dos exemplares em locais dotados de infra-estrutura e condições sanitárias satisfatórias, mas principalmente assegura a preservação das espécies, cuidando para que elas se reproduzam mesmo fora de seu habitat natural. Sem a ação dos órgãos públicos e sem a ação desses criadores, muitas espécies de passeriformes estariam hoje extintas e seriam recordadas em simples gravuras.

É preciso ainda repudiar o vocábulo cativeiro, como substantivo que pretenda designar a forma de manutenção das aves nativas pelos criadores legalizados. Os exemplares legalizados devem ser considerados simplesmente criados ou mantidos em criatórios e não “criados em cativeiro”. A palavra cativeiro, etimologicamente, indica prisão, clausura, opressão, escravidão, servidão e tirania. E no atual estágio de expansão dos espaços urbanos, a criação é talvez o único meio de assegurar a CONSERVAÇÃO de significativa parcela das espécies da fauna brasileira. Não seria adequado, portanto, conceituar tal prática a partir de uma palavra com significado tão pejorativo.

Ademais, as aves atualmente mantidas pelos criadores legalizados são produto de sucessivas gerações historicamente reproduzidas em ambiente artificial, o que torna ainda mais desconfortável o emprego de um vocábulo que se possa associar com opressão e clausura. Não se pode pretender dar à captura de um curió mateiro nas florestas da Bahia a mesma conotação que terá a reprodução de uma ninhada de curió em criatório legalizado. Na primeira situação, surge uma ave cativa na completa acepção do termo. Na segunda, surge um plantel de criação, pronto para garantir a manutenção da espécie, o seu estudo científico e as políticas públicas de repovoamento de regiões recuperadas.

O DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE AS AVES NATIVAS

A partir do momento em que se demarca a divisão existente entre ave silvestre e nativa, é possível tecer algumas considerações sobre a questão do direito de propriedade em relação à avifauna brasileira.

Como anteriormente exposto, a AVE SILVESTRE é bem público (art. 1º da Lei n. 5.197/67). Também devem ser considerados bens públicos, pelos motivos já apresentados: as aves capturadas legalmente, as aves capturadas ilegalmente, bem como as crias (e sucessivas gerações) das aves capturadas ilegalmente.

As AVES NATIVAS, porém, merecem tratamento distinto.

Repita-se que – para os fins do presente texto – apenas é considerada ave nativa aquela REPRODUZIDA em criatório legalizado, seja ele amadorista ou comercial. Saliente-se, desse modo, que as matrizes (mas não as suas crias) existentes em criatórios e que tenham sido cedidas pelo órgão de proteção ao meio ambiente para fins de formação de plantel (oriundas de captura legalizada ou de apreensão das mãos de caçadores furtivos) enquadram-se no conceito de aves silvestres e, por isso, são de propriedade da União. Os criadores, neste caso, são meros possuidores dessas matrizes.

Já o filhote nascido em criatório legalizado, seja ele amadorista ou comercial, é de propriedade do criador e não bem da União. Tal conclusão impõe-se porque a Lei nº 5.197/67, que define a propriedade da União sobre a fauna brasileira, dirige-se exclusivamente aos exemplares silvestres. E não há norma jurídica que dê aos exemplares nativos de criatórios legalizados um tratamento diferenciado [3]: eles estão submetidos às regras gerais do Direito Civil em relação à propriedade sobre bens móveis (quanto à forma de adquiri-la, a forma de transmiti-la etc.). Segundo regra do Direito Civil, bem público é aquele que pertence à pessoa jurídica de direito público (e esse domínio está condicionado à prévia definição legal). Aquilo que, segundo a lei, não é bem público deve ser considerado, por definição do próprio Código Civil, “bem particular” (art. 98). Desse modo, as aves nativas são bens particulares, de propriedade de seus respectivos criadores.

Seria inclusive bastante incongruente permitir que os criadores comerciais VENDESSEM aves legalizadas se, neste ato, não estivesse havendo uma “transmissão de propriedade”. O contrato de compra e venda pressupõe que o alienante seja o proprietário do bem alienado. Se o criador não é seu proprietário, não pode vendê-lo. Aliás, se não existisse neste ato uma verdadeira “transmissão de propriedade”, não haveria porque emitir NOTA FISCAL e recolher o tributo sobre a CIRCULAÇÃO DE MERCADORIA. O imposto sobre circulação de mercadorias e serviços tem como fato gerador precípuo a TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE SOBRE MERCADORIAS. Insista-se: se a operação de transferência da ave de um criador comercial para o consumidor final é tributada, é porque se reconhece a existência, ali, de negócio jurídico com tal transmissão.

O mesmo se aplica em relação ao criador amador. Ele é proprietário da ave que ingressa em seu patrimônio (seja a partir de compra direta em criador comercial ou de transmissão entre amadoristas [4]) e também dos filhotes que porventura venham a ser gerados em seu criatório. Outra vez impõe-se tal conclusão em razão da Lei nº 5.197/67, que estende o domínio da União sobre a fauna SILVESTRE e não sobre aquela nascida em criatórios legalizados.

Recorde-se: o criador amador é geralmente aquele criador “recreativo” que, primeiro, adquiriu em criatório comercial um exemplar isolado, por exemplo, de passeriforme e, posteriormente, desenvolveu aptidão e desejo de reproduzi-los, registrando-se no IBAMA como amadorista. Seguindo tal raciocínio, soaria estranho que um aficionado pudesse dirigir-se a um criador comercial, ADQUIRIR A PROPRIEDADE de um pássaro e, no futuro, quando resolvesse envolver-se mais diretamente com a atividade, “PERDESSE ESPONTANEAMENTE” a propriedade desse exemplar para a União ao cadastrar-se como criador amadorista…

A SUPOSTA ALTERAÇÃO DE REGIME PELA LEI N. 9.605/98

Não procede tampouco a tentativa de dar ao art. 29, §3º, da Lei n. 9.605/98, uma conotação de norma que SUBSTITUA e REVOGUE o art. 1º da Lei n. 5.197/67.

Antes de se adentrar no exame deste argumento, afigura-se útil a reprodução do referido dispositivo:

“Art. 29. […]

[…]

§3º. São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”.

Este parágrafo tem como única finalidade COMPLEMENTAR o art. 1º da Lei n. 5.197/67.

Em 1967, o art. 1º da Lei n. 5.197 havia conseguido estabelecer:

* que a fauna silvestre é composta de animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro;

* que a fauna silvestre é propriedade do Estado (União Federal);

* que os seus ninhos, abrigos e criadouros naturais também são propriedade do Estado;

* que é proibida a utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha da fauna silvestre.

A definição de 1967, porém, não chegou a delimitar, sob o aspecto GEOGRÁFICO, o que era animal silvestre. Daí a crítica antes lançada no presente texto, de que uma leitura literal do dispositivo poderia conduzir à conclusão de que um urso nascido livre na América do Norte poderia ser considerado animal silvestre e de propriedade da União Federal. A Lei n. 9.605/98 teve o mérito de circunscrever, SOB O PRISMA TERRITORIAL, o que deveria ser considerado animal silvestre: “aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”.

É impossível compreender o sentido da regra de 1998 sem agregar-lhe o conteúdo daquela de 1967. Recorde-se, inclusive, que apenas na Lei de 1967 é outorgada a propriedade da fauna silvestre à União. Se eventualmente for compreendido que a lei nova revogou o art. 1º da “Lei de Proteção à Fauna” de 1967, NÃO MAIS SUBSISTIRIA REGRA NO DIREITO POSITIVO ESTABELECENDO A PROPRIEDADE DA UNIÃO SOBRE A FAUNA SILVESTRE. A repercussão de uma interpretação tão descabida quanto esta seria desastrosa, com efeitos maléficos não apenas aos interesses puramente estatais, mas aos de toda a sociedade.

Apenas para fins de esgotar-se o exame do problema, deve ser consignado que, na pior das hipóteses, mesmo que triunfasse a esdrúxula interpretação de que a União passou a ser proprietária também das aves nativas a partir de 1998, a situação mereceria ainda severas matizações. Prefacialmente, repita-se: ESTA TESE É VIGOROSAMENTE REJEITADA PELO PRESENTE TEXTO, e apenas é aqui problematizada em razão daquele que, no direito, é chamado de “PRINCÍPIO DA EVENTUALIDADE” [5].

Segundo a Constituição Federal, a lei nova respeitará o DIREITO ADQUIRIDO (art. 5º, XXXVI). Isto é: quem era “proprietário” de ave nativa antes de 1998 não perderia tal status pela simples promulgação da Lei n. 9.605/98. Interpretada de outro modo a questão, estaria sendo legitimado um verdadeiro CONFISCO, medida de natureza excepcional no direito dos povos ocidentais e carecedora sempre de uma justificativa expressa por parte do Estado em seu ato institutivo.

Se o direito adquirido tem que ser respeitado, aqueles que eram proprietários de aves nativas seguiriam ostentando tal status após 1998 e, desse modo, mesmo depois da promulgação da Lei n. 9.605, seguiriam exercendo os poderes inerentes a quem é titular de “domínio” sobre certo bem.

É poder intrínseco ao conceito de “propriedade” a faculdade que o proprietário tem de dispor da coisa sobre a qual exerce domínio (art. 1228, do Código Civil). EM RESUMO: QUEM É DONO PODE ALIENAR O BEM GRATUITA OU ONEROSAMENTE. Logo, aqueles que, em razão de direito adquirido, fossem reconhecidos como proprietários de aves nativas, mesmo depois de 1998, poderiam aliená-las a terceiros. Estes adquirentes, por sua vez, sucederiam os alienantes em seus direitos e obrigações relativos à coisa e passariam eles próprios a ser proprietários de tais bens. A Lei n. 9.605/98 não chegaria a impedir tal transação nem influir em seu regime. Um bem que já fosse particular antes de 1998 não poderia – simplesmente porque o particular que detinha seu domínio pretendeu aliená-lo a outro particular – transferir-se para o patrimônio da União depois de 1998.

As crias destas aves excluídas do domínio da União em razão de DIREITO ADQUIRIDO seguiriam sendo de propriedade particular mesmo depois de 1998. É que também é conceito comezinho do direito civil o reconhecimento de que o proprietário tem direito aos frutos e produtos do bem que lhe pertença (art. 1232, do Código Civil).

Uma vez que significativa parcela dos EXEMPLARES LEGALIZADOS ATUALMENTE VIVOS é descendente de aves que já eram legalizadas antes de 1998 (e que, por isso, eram bens particulares antes daquela data), nota-se que terá pouca utilidade prática considerar a Lei n. 9.605/98 como o marco da transferência de domínio das aves nativas do particular para a União Federal.

Conclui-se, assim, que mesmo uma interpretação deturpada e afastada das premissas elementares da hermenêutica jurídica – que pretendesse dar à Lei n. 9.605/98 uma conotação que ela jamais poderia assumir – não teria o condão de transferir para o domínio da União todos os plantéis legalizados que permanecem em mãos de criadores amadoristas e comerciais. A maior parte seguiria hoje sendo de domínio do particular. E mais: a reprodução e as transferências destas aves para outros particulares seguiriam sendo permitidas e realizadas sob a proteção da lei atual.

A menos que seja promulgada uma lei ordinária que – fundamentada no interesse público – determine e regulamente minuciosamente o literal CONFISCO, sem exceção, de todos os plantéis e de todos os exemplares de aves nativas, é ilusório e impossível acabar com a propriedade privada sobre tais espécimes.

É quimérica a conclusão de que a Lei n. 9.605/98 “transferiu” para o domínio da União as aves nativas de criatórios legalizados. Aliás, recorde-se, por fim, que o preâmbulo de tal lei registra que ela dispõe, tão-só, sobre “sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”. Ali não está dito que ela se destina também a revolucionar o status jurídico das aves nativas brasileiras. Impossível dar-lhe esse alcance.

A MODIFICAÇÃO ILEGAL DO REGIME JURÍDICO DA FAUNA NATIVA POR ATO NORMATIVO

O IBAMA, por outro lado, é quem tem pretendido, ocasionalmente e pelas vias transversas, ao arrepio da lei, alterar o status jurídico da fauna nativa.

Apenas a título de exemplo, em pelo menos duas oportunidades o IBAMA, através de ato normativo, pretendeu incluir no rol de animais silvestres aqueles reproduzidos em ambientes artificiais.

A Portaria n. 117, de 15/10/97, emitida pelo Presidente do IBAMA e que trata do comércio de animais da fauna brasileira, estende e distorce o conceito legal, afirmando (art. 2º): “Considera-se fauna silvestre brasileira todos os animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, REPRODUZIDAS OU NÃO EM CATIVEIRO, que tenham seu ciclo biológico ou parte dele ocorrendo naturalmente dentro dos limites do Território Brasileiro e suas águas jurisdicionais” (grifou-se).

A Portaria n. 118-N, de 15/10/97, também emitida pelo Presidente do IBAMA e que trata de criadouros comerciais, quase repete ipsis litteris o mesmo conceito distorcido e afirma que “silvestres” são (art. 3º): “todos aqueles animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, REPRODUZIDOS OU NÃO EM CATIVEIRO, que tenham seu ciclo biológico ou parte dele ocorrendo naturalmente dentro dos limites do Território Brasileiro e suas águas jurisdicionais” (grifou-se).

Ambos os atos normativos aqui transcritos violam de modo flagrante o ordenamento jurídico e extrapolam a função que uma “portaria” emitida por órgão ou entidade administrativa pode pretender assumir. Os decretos, as resoluções, as portarias, as instruções normativas e outros atos normativos apenas se prestam a determinar o fiel cumprimento da lei. Eles não podem extinguir ou modificar direitos. Trata-se de uma exigência do princípio da reserva legal. O “dever regulamentar” exercido pela Administração Pública não pode se arvorar em atividade reservada ao Poder Legislativo. Em face de sua antijuridicidade, estes dois atos normativos devem ser considerados nulos, naquilo que definem o que é animal silvestre (definição esta que já existe em lei ordinária e, portanto, não tem porque ser repetida em ato normativo).

O “DEPÓSITO” DE AVES APREENDIDAS EM MÃOS DE CRIADORES LEGALIZADOS

Significativa parcela dos exemplares aprisionados pelo poder público é posteriormente “depositada” em benefício de criatórios comerciais ou amadoristas, para formação de plantéis. Convém perquirir qual é a situação jurídica das crias destas aves “depositadas”.

O filhote nascido em CRIATÓRIO COMERCIAL ou AMADORISTA e que tenha como genitor (é indiferente que seja o macho ou a fêmea ou ambos) um exemplar “depositado” pelo IBAMA é de propriedade do CRIADOR. Neste caso, apenas o genitor era e permanece sendo propriedade da União; não a sua cria.

Tal conclusão se impõe por várias razões.

Em primeiro lugar, essa entrega de matrizes ao criador para formação de plantéis equivale à figura jurídica do “usufruto” e não propriamente a um literal “depósito”. Depósito e usufruto são institutos típicos de direito privado e regulamentados pelo Código Civil.

O primeiro deles é uma espécie de “contrato” [6], por meio do qual o depositante, voluntariamente, entrega ao depositário um bem para que este o guarde até que o depositante o reclame (art. 627, do Código Civil). No contrato de depósito, o depositário não tem, como regra, direito de “servir-se da coisa depositada” (art. 640, do Código Civil), inclusive porque não é da essência dessa modalidade contratual a autorização de tal fruição. No contrato de depósito, o depositante deve pagar ao depositário os valores despendidos para conservação da coisa (art. 643, do Código Civil). Nota-se, desse modo, que o contrato de depósito tem por finalidade básica a entrega da coisa a alguém tão-somente PARA QUE ESTE A CONSERVE em nome do depositante durante certo período.

Já o usufruto é uma espécie de direito real (art. 1225, IV, do Código Civil) que, na definição do Código Civil de 1916, geraria para o usufrutuário o direito de “fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade” do nu-proprietário (art. 713, do Código Civil de 1916). Ou seja, por meio do usufruto, o proprietário segue sendo titular de direito de domínio sobre o bem, mas vê destacados certos atributos inerentes à propriedade (mais especificamente, o direito ao “uso” e aos “frutos” do bem; daí o nome do instituto), que permanecem com o usufrutuário durante o tempo que perdurar o usufruto.

Embora a “cessão” de aves a criadores amadoristas ou comerciais tenha suas particularidades, é facilmente percebido que ela está muito mais próxima da figura do USUFRUTO do que da simples hipótese de DEPÓSITO. O depósito gera a mera guarda da coisa, enquanto o usufruto é estabelecido para que o “possuidor” possa gozar do bem que lhe é entregue. No depósito, o depositante deve indenizar o depositário; enquanto, no usufruto, o usufrutuário não tem direito a reclamar nenhuma indenização, inclusive porque a entrega do bem é feita em seu benefício, garantindo-lhe o direito de auferir a vantagem consistente em frutos da coisa usufruída.

Se a situação de cessão de aves a criadores aproxima-se mais do usufruto do que do contrato de depósito voluntário, conclui-se que as crias advindas desse período de manutenção das matrizes no criatório são de propriedade do criador e não bem público. É que, como antes adiantado, é da essência do usufruto o direito do usufrutuário aos frutos oriundos da coisa usufruída. Tal prerrogativa inclusive dá nome ao próprio instituto: USUFRUTO (uso e fruto). O direito do usufrutuário à percepção dos frutos está estabelecido de modo expresso na legislação (art. 1394, do Código Civil). Aliás, a redação do antigo Código Civil de 1916, nesse aspecto, era bastante sugestiva para o caso ora em análise: “As crias dos animais pertencem ao usufrutuário, deduzidas quantas bastem para inteirar as cabeças de gado existentes ao começar o usufruto” (art. 722).

Em segundo lugar, convém reiterar a situação sui generis do criador comercial, que recebe matrizes do IBAMA e, posteriormente, revende suas crias para o mercado consumidor.

Uma vez que é da essência da atividade mercantil a transmissão de propriedade sobre o objeto comercializado para domínio de terceiro – como antes já foi registrado neste texto – há que se considerar que o criador (alienante) podia realizar o ato de venda, porque era proprietário do respectivo bem. Se o criador comercial não era proprietário da cria nascida em seu estabelecimento, não poderia aliená-la ao consumidor final. Desse modo, é forçoso concluir que o criador adquire “originariamente” a propriedade do filhote nascido de genitor cedido pelo IBAMA e, apenas por isso, pode transferi-lo a outrem [7].

O PERDIMENTO DE BENS PARA O PODER PÚBLICO

O fato de as aves nativas pertencerem ao seu criador não impede o controle e a ação do poder público em defesa da conservação e de manutenção adequada das espécies. Desse modo, o criador deve seguir à risca as condutas que lhes são determinadas pela legislação e pelos atos normativos dos órgãos de controle do meio-ambiente. E, por outro lado, o PROPRIETÁRIO PARTICULAR pode perder o bem para a União Federal sempre que alguma situação antijurídica for detectada em seu criatório, em seu plantel ou em seu cadastro. Desse modo, os maus tratos; a reprodução, a exposição e o torneio desautorizados; o transporte irregular; a inadequação física do criatório; a desatualização cadastral; o envolvimento em atividades ilícitas (como o famigerado comércio ilegal de anilhas obtidas regularmente perante o IBAMA) são todos exemplos de casos que podem gerar o descredenciamento do criador e, conforme o caso, a PENA DE PERDIMENTO de suas aves (que eram de sua propriedade) para a União Federal.

Sim, a União Federal pode vir a adquirir a propriedade de aves que, a princípio eram particulares.

Mas essa situação de PERDIMENTO não se dá exclusivamente em relação a animais.

O Estado pode apreender mercadorias que se encontrem em situação antijurídica (de circulação proibida, em cota superior à permitida, que sejam fruto de descaminho, que estejam em situação fiscal irregular etc.). A arma em situação irregular é também PERDIDA para o Estado (independentemente da eventual existência de crime de porte ilegal de arma). O controle que o Estado exerce sobre o cidadão pode gerar, em diversos casos, a perda da propriedade privada para o poder público. Nem por isso se diga que o bem perdido era, antes, de propriedade da União.

Estas aves “perdidas” (no sentido jurídico) passam a integrar o patrimônio da União (uma forma de aquisição “originária” da propriedade). Esta, por sua vez, pode vir a utilizá-los em seus programas de repovoamento, de reprodução ou mesmo de cessão a criadores legalizados.

CONCLUSÃO

A indagação acerca do regime jurídico das aves nativas é uma preocupação recente no Brasil. Durante grande parte da história do País, aves silvestres foram indiscriminadamente caçadas e postas em cativeiro sem que tal evento gerasse críticas ou questionamentos. Apenas mais recentemente, no Século XX, principalmente a partir de sua segunda metade, o problema da conservação e mesmo o manejo sustentável dos recursos naturais passam a cobrar interesse e a despertar a atenção para uma chamada “consciência ecológica”.

É nesse período mais recente que, dentre outros, é promulgada a Lei n. 5.197/67, que, como antes foi afirmado, tem um caráter fortemente repressivo da caça. Em relação às aves, principalmente passeriformes, o desafio que se apresenta é significativo: a captura de pássaros silvestres e sua manutenção em cativeiro assumem historicamente traços de verdadeira herança cultural no Brasil, deploravelmente transmitida de geração a geração e oriunda de tempos em que pareciam inesgotáveis os recursos naturais.

O incentivo legal para o manejo adequado da fauna e a descoberta mais recente de técnicas para reprodução das espécies em ambientes artificiais propiciaram o surgimento de um novo e promissor panorama neste campo. Nos últimos 20 anos, a criação de aves brasileiras, principalmente de passeriformes, desenvolveu-se de modo extraordinário por todo o País.

Embora sejam notáveis os avanços científicos e a evolução das técnicas de manejo, avançou muito pouco a discussão jurídica inerente ao tema da criação de aves nativas. Esse atraso pode explicar porque o regime jurídico das aves nativas é tratado como verdadeiro TABU, repleto de DOGMAS e MITOS que, longe de esclarecer, apenas se prestam a lançar mais dúvidas e tornar mais obscura a compreensão da matéria.

O surgimento de uma entidade estatal responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas em matéria de fauna e flora – e integrada por um corpo de profissionais altamente especializados – contribui consideravelmente para a melhoria do manejo sustentável das espécies nativas e para a erradicação definitiva das práticas predatórias dos recursos naturais. Entretanto, no que diz respeito à discussão jurídica, a criação dessa entidade não foi ainda capaz de gerar políticas adequadas de esclarecimento e de informação aos criadores.

Pelo contrário, os DOGMAS e MITOS seguem sendo utilizados pelo próprio Estado, talvez como forma de garantir que os criadores se sujeitem mais facilmente às suas determinações administrativas. Talvez o poder público suponha que o criador estará mais submisso e tendente a obedecer a suas diretrizes se acreditar que a ave que tem em mãos é de propriedade da União e que ele, criador, é um simples DEPOSITÁRIO do bem. Talvez o poder público aposte na desinformação como fator de “domesticação” do criador, que não consegue se reconhecer como SUJEITO DE DIREITO. O CRIADOR INCULTO não é capaz de assumir posturas propositivas e reivindicatórias porque julga que o Estado lhe abre uma verdadeira “concessão” (não na acepção jurídica da palavra) ao permitir que sejam criadas aves em ambientes artificiais.

As agremiações e entidades da sociedade civil organizada que lidam com aves nativas devem suscitar este debate, devem buscar o esclarecimento dos criadores, devem divulgar que a Constituição pretendeu garantir o manejo sustentável dos recursos naturais, inclusive daqueles relacionados à fauna e flora brasileiras.

O exercício desse direito pelo cidadão gera para o Estado o dever de manter um órgão ou entidade que proveja “o manejo ecológico das espécies” (art. 225, §1º, I, da Constituição) e, desse modo, preste assistência a quem pretenda dedicar-se a tal atividade. Não se trata, assim, de um ato de benevolência estatal, mas sim a assunção de um dever constitucionalmente estabelecido.

E, por outro lado, as aves nativas existentes nos criatórios legalizados integram o patrimônio de seus criadores, devendo ser reconhecidas como BENS PARTICULARES, que podem inclusive ser alienados [8], desde que tais alienações sejam realizadas em conformidade com a legislação ambiental vigente.

Ao invés de apostar na desinformação, o Estado talvez devesse conscientizar os criadores de que estes – embora proprietários das aves nascidas em seus criatórios – podem sofrer o PERDIMENTO de tais bens para o poder público. Tal pena se impõe quando os criadores não seguem as condutas e regras que lhes são determinadas pela legislação e pelos atos normativos dos órgãos de controle do meio-ambiente (devendo, obviamente, existir proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a gravidade da pena correspondentemente imposta).

NOTAS:

1 – O autor é Consultor da COBRAP.

2 – Embora seja questão de limitado interesse prático, uma exceção lógica a tal situação apenas poderia ser vislumbrada no caso em que, segundo o regime da Lei n. 5.197/67, fosse autorizada a captura e venda do próprio exemplar capturado. Nesse caso, o criador – tal como o explorador de jazidas minerais (que são de propriedade da União, art. 176, da CF) – adquiriria a propriedade do produto dessa captura e, apenas por tal motivo, poderia transacioná-lo com terceiros (assim como o explorador de mina adquire a propriedade do produto da lavra, art. 176, da CF).

3 – O art. 20 da Constituição Federal, ao dispor sobre os bens da União, não faz menção à fauna. Tampouco o art. 99 do Código Civil cita a fauna como integrante do conceito de bens públicos.

4 – Exceto no caso de ave originalmente cedida ao criador pelo órgão ambiental para formação de plantel.

5 – O princípio da eventualidade é de larga aplicação no direito processual brasileiro e permite que o réu, mesmo fundamentado em uma tese principal, esgote todos os argumentos de sua defesa explorando outras teses menos importantes.

6 – Embora exista também o “depósito necessário”, que ocorre, por exemplo, no caso de bagagens de hóspedes de hotéis durante o tempo de sua estada no estabelecimento, ou ainda em casos de calamidade pública (arts. 647 e seguintes, do Código Civil).

7 – Outra vez, e sempre a título de simples recurso analógico, merece ser recordado o caso das jazidas de minerais. Elas são de propriedade da União (art. 176, da CF), embora o explorador da mina adquira a propriedade do produto da lavra (art. 176, da CF). Situação semelhante é a que ocorre com o criador de aves que utiliza matrizes cedidas pelo órgão de defesa do meio ambiente.

8 – Alienar não pressupõe auferir lucro. Não é objetivo do presente texto distinguir a situação do criador comercial e do amadorista. De todo modo, ainda que não tenha o ânimo de lucro, é claro que o criador amador também poderá alienar suas crias. Em primeiro lugar, seria bizarro imaginar que alguém reproduz espécies para acumular consigo os filhotes indefinidamente. Levando-se em consideração a larga expectativa de vida de muitos passeriformes, um criador que não pudesse transferir a terceiros suas crias deixaria, em poucas temporadas, de produzir novos exemplares, diante do esgotamento de sua capacidade de criação. Em segundo lugar, tal alienação é algo que satisfaz integralmente as premissas envolvidas no manejo ecológico e adequado das espécies. A transferência de crias é um fator de multiplicação das criações e, por isso, de preservação da fauna brasileira.

Escrito por Allan Helber Oliveira, em 19/4/2006