Resistência Bacteriana
Os riscos do uso inadequado dos antibióticos
O homem não pode ser considerado culpado por não imaginar, e menosprezar, a capacidade de as bactérias se tornarem resistentes às suas drogas, porém o excesso do uso de antibióticos, muitas vezes desnecessário, causou um aumento rápido e progressivo no número de bactérias resistentes em nosso organismo. Tomemos um exemplo para melhor entender a dinâmica dessa resistência. Imagine um terreno barrento, portanto de terra marrom, em que vivem e proliferam diversos ratos brancos e apenas um casal de ratos marrons.
Os ratos marrons irão gerar sua prole; porém, como disputam o espaço e alimento com os ratos brancos, não haverá crescimento importante no seu número. Se colocarmos um homem com um rifle diante dos roedores, ele só verá os ratos brancos, uma vez que estes sobressaem na terra marrom. Assim, ao matar apenas os ratos dessa cor, o homem fará com que a população desses roedores diminua com o tempo.
Agora, imagine que as balas do rifle podem ser comparadas aos antibióticos; os ratos brancos, às bactérias; os ratos marrons, por serem da mesma cor que a terra, às bactérias resistentes aos antibióticos (estes seriam as balas do rifle). Se o homem usar o rifle de maneira racional, matando apenas os ratos brancos que nos incomodam, não causará uma diminuição importante de sua população e, por conseqüência, não fará com que o número de ratos marrons aumente. Entretanto, se houver centenas de homens armados exterminando os ratos brancos, em pouco tempo os marrons, sem encontrarem outros roedores para competir por alimentos, proliferarão e tomarão conta de todo o terreno; ou seja, uma vez que os homens não conseguem visualizá-los, e assim matá-los, são resistentes.
Uma das bactérias que mais preocupam a classe médica na atualidade é o enterococo, dada a sua capacidade de causar infecções especialmente em pacientes hospitalizados e debilitados por doenças graves, como os internados em Unidades de Terapia Intensiva. Nas últimas décadas, o número de casos de infecção por esse agente tem aumentado, e, ironicamente, em parte, pelo uso abusivo de antibióticos potentes e modernos. O enterococo pode, normalmente, habitar nosso intestino e sobreviver à administração desse tipo de droga enquanto as outras bactérias são destruídas. Dessa forma, sem encontrar bactérias para competir por espaço, prolifera com maior facilidade e causa infecções nos pacientes internados e enfraquecidos.
O aumento dos casos de infecção pelo enterococo já preocupava o meio médico quando fatos ocorridos na França, em 1986, e nos Estados Unidos, em 1989, seriam motivos para novo alarme. Nesses anos foram isolados, em infecções hospitalares, enterococos resistentes ao antibiótico vancomicina, até então um dos poucos extremamente eficazes contra eles. O meio médico se deparava com uma bactéria que poderia tornar-se resistente a todos os antibióticos, causando uma infecção incurável. Em dez anos, esse tipo de bactéria proliferou e disseminou-se pêlos hospitais; em 1997, era a causa de mais de l 5% de todas as infecções hospitalares por enterococo.
A propagação nos Estados Unidos do enterococo resistente à vancomicina deveu-se ao uso abusivo da própria droga, que induz o aparecimento desse tipo de enterococo. Enquanto essa bactéria permanecia restrita ao meio hospitalar, o temor médico era o da contaminação dos pacientes internados e debilitados. Mas o surgimento do enterococo resistente à vancomicina na natureza, no continente europeu, demonstrou o risco de esse agente causar infecções em habitantes da comunidade. Finalmente, descobriu-se o elo desse fenômeno com uma alteração — realizada pela própria mão do homem — na ecologia microbiológica.
Há mais de trinta anos o antibiótico é empregado na alimentação animal para promover o crescimento rápido e acentuado de porcos e aves. Estima-se que mais da metade de todos os antibióticos em uso no mundo são utilizados em alimentos animais. Essas drogas suprimem bactérias intestinais que prejudicam a saúde do animal e seu crescimento e, com isso, lhe proporcionam também um maior aproveitamento da alimentação. O que o homem nunca imaginou é que tais antibióticos poderiam se voltar contra ele mesmo, desencadeando o surgimento de bactérias resistentes às drogas da atualidade. Entre os antibióticos usados na alimentação animal destaca-se a avoparcina, que foi abusivamente utilizada nos países europeus, embora proibida nos Estados Unidos por suspeita de ser uma substância cancerígena. A avoparcina, semelhante à vancomicina, funciona como uma droga que induz o aparecimento do enterococo resistente à vancomicina em porcos e aves, assim como na natureza. Na Europa, sua aplicação em alimento animal foi mais importante como indutor do enterococo resistente do que o emprego da própria vancomicina no tratamento de pacientes, ao contrario do que ocorreu nos Estados Unidos. Em 1994, na Dinamarca, foram utilizados 24 quilos de vancomicina (para pacientes) contra 24 toneladas de avoparcina (em alimento animal). Na primeira metade da década de 1990, a Áustria empregava anualmente meia tonelada de vancomicina contra 62 toneladas de avoparcina. A conseqüência do uso abusivo desses antibióticos foi revelada na própria década de 1990. Encontraram-se enterococos resistentes à vancomicina
não só nos alimentos tratados com a avoparcina, mas também nas fezes de porcos e galinhas, o que deu origem à colonização da natureza por essas bactérias.
Estendendo-se a procura, em pouco tempo esses enterococos foram descobertos também em fezes de humanos — o homem criava e carregava nas suas fezes uma bactéria resistente à principal arma terapêutica que possuía. A colonização do ser humano por essas bactérias dava-se pela ingestão de alimentos contaminados, principalmente a carne. A descoberta exigiu a adoção de medidas urgentes. Em 1995, foi proibido o uso da avoparcina na Dinamarca; em 1996, na Alemanha; e em 1997, em todos os países da Comunidade Européia.
O efeito foi imediato. A taxa de enterococo resistente nos animais da Dinamarca caiu de 82% em 1995 para 12% em 1998. Na Alemanha, a taxa de enterococos resistentes encontrados nas carnes de aves caiu de 100% em 1994 para 2 5% em 1997; e nas fezes de humanos, de 12% para 3%. O homem descobria a tempo a alteração bacteriana que criara com o uso de antibióticos no alimento animal. Em 1998, mais quatro antibióticos semelhantes aos empregados em foram banidos dos alimentos animais: a tílosina, a espiramicina, a bacitracina e
a virginiamicina. Esse exemplo demonstra como o homem, por meio de suas técnicas industriais, pode influenciar o surgimento de bactérias modificadas com potencial risco para si mesmo.
Trecho do livro “A HISTÓRIA E SUAS EPIDEMIAS” de Stefan Cunha Ujvari- Editora SENAC, 2003
Postado por
Anderson Moreira de Almeida
Carangola MG
Consultor COBRAP (www.cobrap.org.br)
Escrito por Stefan Cunha Ujvari, em 3/6/2004