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A vida na Terra em jogo

O perigo da extinção

GILLES LAPOUGE

Correspondente

Até sexta-feira, centenas de especialistas estão reunidos em Kuala Lumpur (Malásia) na Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a Biodiversidade, 12 anos depois da Rio-92, que suscitou grandes esperanças e não pôde interromper a marcha da morte. É bem disto que se trata: como salvar a biodiversidade, como salvar o ser vivo?

Para matar as espécies já houve muitos assassinos: o desmatamento, a poluição, a destruição dos hábitats. Atualmente, um novo matador foi desmascarado e é contra ele que Kuala Lumpur gostaria de se levantar: o aquecimento global. A incontestável revista Nature nos informa que um quarto das espécies terrestres poderia ser extinto pelo aquecimento global até 2050.

O século 21 poderia fomentar o desaparecimento, especialmente na África, dos grandes mamíferos, o leão, o elefante, o rinoceronte. Na mesma sepultura estariam os grandes macacos da Ásia e da África. O que não dizer dos animais menos espetaculares, os milhares de espécies de invertebrados, insetos, borboletas…

Um desastre, portanto, para os “viventes”. Ora, o que os homens – exceto os especialistas, os sábios, os ecologistas, os poetas – se recusam a saber é que o homem e o “vivente” estão no mesmo barco e o próprio homem cairá no abismo quando os animais se extinguirem.

As sociedades se ocupam de um punhado de coisas – de guerrear por um Deus ou outro, de eleger presidentes e deputados, de criar medicamentos para rejuvenescer ou ficar bonito, de fazer tanques. Quando elas têm tempo, lançam máquinas a um planeta vazio como Marte para aí descobrir traços de vida – suprema ironia no momento em que a própria Terra deixa a vida animal (e até a vegetal, os cogumelos, os liquens…) se esvair, como o sangue escapa de uma artéria dilacerada. Sim, os homens fazem tudo isso e até têm razão. Mas como é que, ao mesmo tempo, permanecem tão indiferentes ao desaparecimento programado de um quarto das espécies existentes na Terra?

Parece que não chegamos a ter consciência da realidade do perigo. Talvez porque esses estragos se cumpram a longo prazo. No entanto, basta recuar um ou dois séculos para se horrorizar com o desastre.

Vejamos a América do Norte. Quando Colombo aí desembarca, é uma Arca de Noé fabulosa. Américo Vespúcio, o navegador italiano que deu seu nome ao novo continente, se extasia: “Cheguei ao Paraíso terrestre.”

Essas florestas do Éden, esse tapete interminável de vegetação e flores (The Grassland), esses milhares de espécies correndo livremente pelos campos, sim, tudo nos fala do início da Criação. E, no céu, milhões e milhões de pássaros. Entre esses pássaros, o Ectopistes migratorius, também chamado de pombo-passageiro.

O pintor de pássaros Jean-Jacques Audubon, o genial Audubon, está às margens de Ohio em 1813. Sobre ele passam essas aves. “O ar estava cheio de pombos-passageiros. A luz do dia, em pleno meio-dia, estava obscurecida como por um eclipse. Os excrementos caíam em flocos de neve se liquefazendo e o zumbido das asas me atordoava… É difícil descrever-lhes o espetáculo admirável… Os pombos passavam sempre em mesmo número e continuaram, sem cessar, roubando-me a luz do sol por três dias inteiros.”

Setenta e cinco anos depois, resta na América um único pombo-passageiro, uma fêmea, nascida em cativeiro, em Cincinnati. Ela se chama Martha. Procura-se um companheiro para ela. Não existe mais. Os naturalistas europeus viajam para admirá-la. Ela vive por muito tempo. Suas cores maravilhosas se apagam.

Ela morre de velhice em 1.º de setembro de 1914. O corpo é levado para Washington. Lá, é feita a autópsia. O veterinário ornitólogo começa sua tarefa quando, de repente, solta seu escalpelo. Ele não ousa tocar o coração de Martha. Para o coração do belo pássaro para sempre riscado do globo, nada de escalpelo, nada de cortes, nada de nódoas. A América chora.

Quantos eram os bisões nas planícies da América, os animais magníficos que pesavam entre 300 quilos e 1 tonelada e corriam como cavalos mustangs? Entre 30 milhões e 60 milhões. Em 1820, não eram mais que mil. Felizmente, criaram um parque nacional, o Yellowstone. Outros parques se seguiram. Hoje, os bisões estão salvos. Há milhares em espaços protegidos, sim, está salvo, mas é o mesmo bisão? Ele está gordo, em vez de estar robusto. Ele não corre mais como antes, incansavelmente. Seus ossos são menos desenvolvidos. “Não há mais a perfeição nervosa que caracterizava seu corpo”, diz um observador.

São apenas dois exemplos espetaculares, mas há dezenas, centenas de outros.

O dodô de Madagáscar partiu sem retorno. E não é só na América que o desastre ocorreu. Todos os países demonstram a mesma cegueira, a mesma avidez.

É isto que hoje está em jogo na conferência de Kuala Lumpur: saber se os macacos, os leões, mas também os coelhos, mas também os pintarroxos, as lagartas, as borboletas, as abelhas vão seguir o mesmo caminho do bisão ou do pombo-passageiro, o caminho da morte.

O Estado de S. Paulo

Escrito por Gilles Lapouge, em 15/11/2006

Amazônia está no seu prato

Sem dizer da destruição dos habitats

Sexta, 13 de outubro de 2006, 07h41

Reprodução

A Amazônia sofre com a exploração da pecuária

João Meirelles Filho pertence à décima geração de uma família de pecuaristas. E não come carne bovina.

A opção alimentar representa mais que uma questão de gosto. Meirelles cresceu observando a forma como a produção de rebanho bovino se deu e ainda se dá no Brasil: normalmente às custas da destruição da floresta.

Meirelles hoje vive em Belém, no Pará, onde coordena a organização não-governamental Instituto Peabiru e se dedica ao fortalecimento institucional de entidades sem fins lucrativos da Amazônia. O autor do Livro de Ouro da Amazônia tem na ponta da língua as razões de sua opção gastronômica.

A floresta perde cerca de 24 mil quilômetros quadrados de cobertura nativa ao ano, extensão equivalente a dois terços da Bélgica ou a um estado do Sergipe. Para Meirelles, a principal causa está no aumento da demanda de carne por consumidores brasileiros – principalmente da região Sudeste e Sul – e na forma insustentável como a produção é feita: em fronteiras sistematicamente abertas junto à Floresta Amazônica. Desmata-se, degrada-se o solo com o pisoteio do gado e a falta de manejo, então derruba-se mais floresta para a abertura de novos pastos.

E por que criar gado justamente na Amazônia?

O filho de pecuaristas sabe como pensam os fazendeiros tradicionais locais: a produção lá é muito mais barata que outras regiões porque as terras custam pouco, a mão-de-obra sai quase de graça e, além disso, há pouca fiscalização dos órgãos ambientais, sanitários, trabalhistas e da Receita Federal. Isso compensa economicamente a distância dos centros consumidores.

As áreas deixadas para trás transformam-se então em campos abertos para o plantador de soja. Meirelles explica que o solo amazônico é naturalmente pobre. Enquanto nas florestas européias, a terra concentra 80% dos nutrientes e a vegetação os demais 20%, na floresta amazônica a relação é inversa. “Ao se cortar a vegetação, a riqueza orgânica vai embora. A soja entra então, com o pacote completo, formado por forte adubação química, maquinário e um arsenal de agrotóxicos”, afirma.

Segundo Meirelles, de 1964 a 2004, o rebanho bovino da Amazônia saltou de 1,5 milhão para 60 milhões de cabeças, equivalente a um terço do rebanho brasileiro. Do total de carne produzida na região, mais de 90% é consumido aqui mesmo, no Brasil. “Já há três cabeças de boi para cada habitante da Amazônia”, diz.

Outros dados reunidos por Meirelles:

– a pecuária é a principal atividade econômica rural da Amazônia. A maior parte dos 400 mil pequenos proprietários rurais da Amazônia tem na pecuária a principal fonte de renda.

– um boi de 16 arrobas tem em média 240 kg de carne. O brasileiro que come carne bovina diariamente, terá ingerido um boi a cada 6,6 anos, ou 11 bois inteiros durante a vida. Destes 11 bois, pelo menos quatro terão vindo da Amazônia. Ou seja, a cada três dias, o brasileiro come “um bife da Amazônia”.

– a pecuária é um péssimo empregador. Numa grande fazenda da Amazônia, emprega-se diretamente uma pessoa em média a cada 700 bois, que ocupam área de mil hectares. A mesma área com agricultura familiar empregaria pelo menos 100 vezes mais.

– a pecuária não distribui renda. A ilha do Marajó, uma área do tamanho da Suíça, após 200 anos de atividade tornou-se uma das áreas mais pobres da Amazônia, com índices de desenvolvimento humano (IDH) equivalentes aos de Bangladesh.

Amália Safatle é jornalista e editora associada da Página 22, revista mensal sobre sustentabilidade, que tem como proposta interligar os fatos econômicos às questões sociais e ambientais.

Escrito por Amália Safatle, em 17/11/2006