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O Canto do Curió

Curió Matador

O Canto do Curió

por André Felipe de Andrade

Alfredo chegou em casa entusiasmado. Acabara de passar no mercado da Madalena e trazia nas mãos uma gaiola com um curió. A compra daquele pássaro era um sonho acalentado há muito, que só foi possível após um árduo trabalho de convencimento da sua esposa, D. Conceição. Mulher piedosa e sensível, ela achava uma judiação deixar um passarinho engaiolado.

Mas atendeu aos apelos do marido. Afinal ele era aposentado, e precisava de algumas distrações além das partidas de dominó que jogava todo santo dia na calçada de um bar da rua em que moravam, no bairro de Areias. O casal vivia ainda com uma filha solteira, Carminha, com seus vinte e tantos anos.

A gaiola foi colocada no terraço, não sem uma detalhada explicação a respeito das qualidades artísticas daquela espécie de passarinho. O curió era uma ave tipicamente brasileira, de canto fácil e perfeito. D. Conceição desconhecia aquela erudição de seu marido e, com a segurança dos mais de trinta anos de convivência, apostava que ele havia aprendido aqueles ensinamentos com o vendedor com quem fizera negócio.

No início, todos ficaram ansiosos em ouvir o canto da ave. Mas o curió mudo chegou, mudo ficou. E os dias foram se passando para desespero do velho Alfredo. Sentindo-se lesado após uma semana de espera, o velho foi então ao mercado. O vendedor deu explicações as mais variadas, que sempre responsabilizavam o dono do animal. Homem paciente, Alfredo memorizou todas as recomendações e as cumpriu à risca. Mais alguns dias e nada. Aí já era um abuso, pensou o aposentado. No exato momento em que se dirigia ao terraço para pegar a gaiola e devolver o pássaro, a casa foi tomada por uma música rara: O curió cantou. E que beleza de sons, que canto melodioso ! Alfredo ficou estatelado e até uma lágrima apareceu em seu olho. D. Conceição veio correndo da cozinha para ouvir de perto aquela beleza. Mas de súbito, a velha pôs a mão no peito, e num grito caiu ao chão. O curió parou de cantar. Alfredo ficou alguns segundos em estado de choque, para em seguida se abaixar e ver que sua esposa não mais respirava. Infarto fulminante.

Os dias que se seguiram ao passamento da mulher foram de grande vazio. Alfredo estava inconsolável, e demorou a perceber que mais uma vez o curió havia voltado ao estado de completo silêncio. Alguns dias depois, o velho decidiu ir com sua filha passar alguns dias na casa do filho mais velho. Alfredinho era casado e morava em São Paulo. Era uma maneira de atenuar um pouco a dor da saudade da esposa. O curió ficou aos cuidados de uma vizinha, D. Neném.

A viagem transcorria tranqüilamente, com passeios e velhas lembranças. Porém, um belo dia, um vizinho ligou para contar que o filho caçula de D. Neném havia morrido. Era um rapaz de uns dezoito anos, muito saudável, e a causa da morte ainda não fora esclarecida. Sabia-se que ele havia sido encontrado morto na sala de sua casa, aparentemente de causa natural. Alfredo decidiu voltar de São Paulo com Carminha, a tempo de pelo menos assistir à missa de sétimo dia. Lá chegando, o velho encontrou um grupo de vizinhos que comentava um fato interessante: No dia da morte do rapaz, o curió havia cantado com desenvoltura, deixando todos que o ouviram encantados, inclusive o filho de D. Neném. Um vizinho perguntou a Alfredo se aquela circunstância não lembrava a da morte de sua Conceição. Alfredo era nada supersticioso e disse que tudo havia sido uma triste coincidência. Onde já se viu curió agourando gente ?

Aos poucos a vida foi voltando ao normal para Alfredo e sua filha. As partidas de dominó, as caminhadas na praça, as partidas de futebol do seu time do coração serviam para aliviar a saudade da esposa. Um belo dia, quando voltava para casa, o aposentado ouviu da calçada uma música doce e belíssima. O curió estava cantando ! Por um instante Alfredo esqueceu-se de tudo, fechou os olhos e se deleitou com aqueles doces trinados. Ao entrar em casa, deu de cara com a filha caída. O velho ainda teve tempo de ouvir a filha dizer num suspiro: “Pai, vou feliz à casa do Senhor. Encontrarei minha mãe. Os anjos me levam.”

Não era fácil perder mulher e filha em menos de um ano. Por isso os vizinhos não se surpreenderam quando no velório de Carminha Alfredo passou mal. Era um derrame cerebral. O velho foi internado na U.T.I. de um hospital recifense e lá ficou por uma semana. Mas ele tinha uma saúde de ferro e resistiu. Com todo apoio da irmã, D. Gracinha, ele foi transferido para um quarto do hospital. O aposentado ficou sem os movimentos das pernas e de um braço. Teria que entrar num longo processo de recuperação. Quando teve alta, sua irmã achou por bem levá-lo para a residência dela em Casa Amarela.

D.Gracinha foi à casa de Alfredo para pegar suas roupas. E viu o curió. Teve a idéia de levar para a sua casa, com a finalidade de distrair o irmão. Ela decidiu fazer-lhe uma surpresa: pôs a gaiola dentro do quarto onde o velho dormia. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que ele viu foi o curió. Com os olhos arregalados de pavor, ele deu um suspiro. Como se fosse combinado, na mesma hora a ave começou sua doce cantoria, como nunca havia feito antes. Nunca em sua vida Alfredo tinha escutado um som como aquele. Nem das vezes anteriores em que o pássaro havia cantado. Música celestial, que embalou Alfredo naqueles que foram seus últimos minutos de vida.

Escrito por André Felipe de Andrade, em 6/10/2003

Pássaro beija flôr

Um belo relato

Caçador de Bicudos

Escrito por: Mário Prata em 29/3/2003]

O caçador de bicudos

O que mais me impressionou foi como aquela rede ficou grande. Aberta, devia ter uns 10 metros por 30. Dobrada, como eu costumava ver, era um pacote bem pequeno. Era uma rede de caçar passarinhos. Tinha chegado pelo correio, importada, cara. Me lembro da sua alegria a nos mostrar a rede. Era preta. Os bicudos que se cuidassem.

Ave passeriforme fringilídea (Oryzoborus crassirostris), largamente distribuída no País. O macho é preto, com um espelho branco na asa; a fêmea, parda, com a parte inferior pardo-avermelhada e o pescoço mais claro. Alimenta-se de sementes de capim, e é muito apreciada como ave de gaiola.

Resumindo, o bicudo é um passarinho. Nem bonito nem com canto tão agradável. Mas ele ia até o fim do mundo caçar bicudos. Daí, para as reuniões com outros bicudeiros de todo o País, para concurso e campeonatos de cantos, era um tiro.

Ele esticava a rede entre as árvores, lá no Mato Grosso. Ele, o passarinheiro (contratado no local, sabedor dos ninhos e caminhos) e eu. Psiu!, me dizia. E, agachado atrás dos arbustos, começava a assoviar imitando um bicudo.

Além de médico, rotariano e meu pai, era um caçador de bicudos. O resto não importava. Os bicudos!!!

Meu pai levava, nas caçadas, o que hoje eu chamaria de flat de passarinho. Era uma gaiola vertical, com vários apartamentozinhos. Um para cada bicudo caçado. Na rede, depois de meia hora estavam vários pássaros que não a enxergavam (aí é que estava o segredo) e se entrelaçavam por ali. Era quase invisível. Meu pai ia lá com o passarinheiro, tirava os que não eram bicudos e soltava. Tinha vez que não encontravam nenhum bicudo. Mas ele ficava ali até o sol se pôr porque, segundo ele, era a melhor hora para se caçar. Recuávamos e ele voltava a assoviar atrás da moita. Ele levava a coisa a sério. Passava, às vezes, uma semana na função para trazer um, dois bicudos.

Na nossa casa tinha uns 15 engaiolados. Me lembro do nome de alguns: Melodia, Porém, Todavia, Contudo, Aluízio, Xibiu, Desemboque e Nogórdio. O Nogórdio, um dia, eu perguntei a ele o que era, porque os outros nomes eram até poéticos, senão gramaticais. E ele me mandou olhar no pai dos burros, o dicionário. E, até hoje, eu não havia procurado. Mas, escrevendo estas memórias do velho e bom Bertin, fui cabisbaixo e ignorante ao pai dos burros. E lá, está explicado:

Nó górdio: segundo a lenda, nó que prendia ao timão o jugo da carreta do rei Górdios, depositada no templo de Zeus, em Górdios, capital de Frígia, sobre o qual existia a profecia de quem o desatasse tomaria para si a Ásia; pela tradição, o conquistador Alexandre de Macedônia cortou tal nó com sua espada e invadiu a Ásia. Houaiss, Editora Objetiva.

No começo (desde que me entendia por gente), meu pai tinha de tudo quanto era passarinho. Canário, canário-da-terra, periquito australiano (os que eu mais gostava) e até uma pentelha de uma araponga. Com o tempo foi canalizando tudo para os bicudos. Agora ele só tinha bicudos. Uns pretos, outros marrons. E ele se gabava – em casa e nos campeonatos de bicudos e curiós – de ser um dos três criadores do Brasil a conseguir fazer com que eles se procriassem no cativeiro. A palavra cativeiro era ele mesmo quem usava.

Meu pai era um homem generoso, bom e honestíssimo. Desde pequeno eu não entendia por que ele prendia dentro de pequenas gaiolas aqueles bichinhos que viviam felizes lá no Mato Grosso. No fundo, achava aquilo uma pequena maldade. Tinha vontade de soltar todos. Uma vez ameacei, adolescentemente, e ele me disse: se soltar eles morrem. Não sabem mais viver em liberdade.

O problema chato, para mim, era tratar dos bicudos. Sim, quando eu ficava de castigo – e isso era quase todo dia -, uma das condenações era tratar dos passarinhos. E não era uma tarefa fácil. Houve épocas que eram mais de 20. Por isso mesmo que era um castigo. Primeiro, tinha que tirar a parte de baixo da gaiola, com um jornal dobrado em cima de uma madeira que deslizava para fora. Ali ficava a casca do alpiste comido e os ressecados cocôs. Tinha que lavar a madeirinha (\\\”muito bem lavado!\\\”), recortar um jornal (A Gazeta Esportiva) e recolocar lá dentro. Agora trocar a água. Tinha cocô ali, também. Agora pegava a caixinha onde ficava o alpiste e tinha que assoprar. Horas assoprando até não ter mais nenhuma palhinha sem a semente, que era o que interessava. E complementar a alimentação do bicudo. E tudo isso enfiando a mão dentro da gaiola – pelo menos seis vezes – ficando sujeito a eventuais bicadas. E, depois disso tudo, varrer o chão da varanda.

A partir de 2000 ele começou a fazer hemodiálise, já bem velho. Mas, morando sozinho com a minha mãe, ainda cuidava dos últimos 12 bicudos, a quem chamava pelo nome, com quem conversava. Conhecia – é claro – o canto de cada um deles. Tinha seus troféus.

Mas foi aí que o fato se deu. O médico disse que ele poderia pegar uma infecção por causa dos bicudos e seria fatal. Ele tinha que se desfazer daquilo, daquele pedaço da sua vida. Ainda tentou contratar um tratador de bicudos. Mas o médico insistiu. Não pode mais ter bicudo aqui!

Vendeu os bicudos por 8 mil reais. Eu sabia que aquele dinheiro era para sustentar os últimos meses de vida dele. Sem os bicudos a sua vida não teria mais sentido.

Ficava sentado na varanda dos fundos, fazendo palavras cruzadas e olhando para uma parede branca com 12 solitários pregos. Xibiu, Porém, Todavia, Desemboque, Aloízio, ia dizendo.

E ia morrendo. Morrendo feito um passarinho.

Escrito por Mário Prata, em 1/9/2003