Em busca do canto perdido
Criadores de curió de Florianópolis
Criar curiós é paixão antiga para os manezinhos, como são conhecidos os florianopolitanos da gema, nascidos na ilha de Santa Catarina. Dizem até que, para reconhecer um deles, basta conferir se o sujeito tem o dedo indicador em forma de gancho, de tanto segurar na alça da gaiola para passear com o passarinho. A história é verdadeira apenas em parte. Qualquer passarinheiro de verdade e manezinho legítimo sabe que gaiola não se carrega pela alça com o dedo, mas pela base, com a mão espalmada. Sair com o curió faz parte do treinamento básico para os acirrados torneios de canto que volta e meia movimentam Florianópolis. ‘Curió é igual criança: fica faceiro quando sai para dar uma volta. Aí ele canta melhor, com mais alegria’, diz o criador Aldo Machado. ‘E o passarinho também precisa se acostumar com o mundo para não estranhar quando tiver de sair de casa para competir.’
CURIÓDROMO Torneios de canto de curió existem em todo o Brasil, do monte Caburaí (RR) ao Arroio Chuí (RS). Mas só em Florianópolis existe curiódromo, uma arena especialmente construída para abrigar esse tipo de competição em suas diversas modalidades. Além disso, os criadores de Santa Catarina estão conseguindo resgatar o canto nativo dos curiós que, até décadas atrás, ainda viviam em estado selvagem na faixa de Mata Atlântica que ia do município de Palhoça a Camboriú. Chamado de canto Florianópolis, ou canto Catarina, é tido como um dos mais belos sons que um curió pode emitir. E que por pouco não se perdeu. ‘O canto Florianópolis é mavioso, melodioso, agradável ao ouvido’, diz o ornitólogo Aloísio Pacini Tostes, um dos maiores especialistas em pássaros no país e presidente da Cobrap – Confederação Brasileira dos Criadores de Pássaros Nativos.
Segundo o criador Machado, curió é que nem criança. Fica faceiro quando sai para dar uma volta, e aí canta melhor
Para os entendidos, o canto Florianópolis tem duas características que o tornam tão especial. Uma é o que os criadores chamam de alteada de canto, um assovio em que o curió repete duas notas que mais ou menos se parecem com um ‘tiui-tiui’, algo único entre os cantos brasileiros. A outra característica é o arremate, apelidado de pandeirinho pelos aficionados, que pode ser traduzido como três assovios bem rápidos e curtos com os quais o passarinho encerra o canto, um ‘qui-qui-qui’ de deixar maravilhados os juízes das competições, pois nem todo curió consegue acertar essa parte do canto. ‘De tão difícil de o passarinho aprender, o pandeirinho é opcional, segundo o regulamento. É a cereja do bolo’, explica Dirço Amaral, dono do criadouro Biguaçu, feliz da vida com seus curiós Regente e Guri, capazes de executar o canto Florianópolis à perfeição, com ‘qui-qui-qui’ e tudo.
No Brasil chegaram a ser catalogados mais de 100 tipos de cantos regionais, como o Florianópolis, o Paranaguá, o Paracambi, o Vivi Tetéu e o Vovô Viu. Quando os curiós viviam em estado selvagem – situação que hoje praticamente só existe em algumas regiões do Norte e Nordeste – o canto se mantinha geração após geração. Mas cantos como o Florianópolis começaram a correr risco de extinção quando ficou mais fácil encontrar curió em gaiola do que na mata. Para formar bons competidores, os criadores punham os filhotes a ouvir cantos gravados em fitas cassete ou em CDs, para que os curiozinhos ouvissem direitinho como teriam de cantar. Acontece que, mais organizados, os criadores paulistas saíram na frente e impuseram ao país o chamado canto Praia Grande, originário do litoral de São Paulo, que logo se tornou padrão nacional. ‘Na verdade, o canto Praia se tornou uma grande indústria, que por pouco não engoliu os diversos cantos regionais’, diz Jorge Guerreiro Heusi, dono do Sítio do Curió, um dos criadouros especializados no canto nativo.
Publicado da Revista Globo Rural
Escrito por Gladinston Silvestrini, em 6/7/2004