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Crônica de um Crônico

Eu moro em São Paulo

Voltando de uma visita a um amigo hospitalizado, resolvo parar no caminho para um lanche em um bar que freqüento há mais de quarenta anos. Localizado no Largo de Pinheiros, atrás da Igreja Matriz da Paróquia , enfrenta as mudanças juntamente com toda a região.

O Largo era como as praças ainda existentes no interior, com direito a coreto, aquele ir e vir das moçoilas e dos não tão moçoilos. Todas a s missas eram disputadas, cada uma com as suas características: as matinais naturalmente freqüentadas pelos mais idosos. Os de antes do almoço por aqueles que aproveitavam o domingo para descansar um pouco mais. Os da tarde, ah, esses em sua maioria eram dos jovens que nas saídas ou mesmo durante os longos sermões aproveitavam para piscadelas e olhares sugestivos.

As vestes, com forte cheiro de naftalina, misturado aos odores dos laquês e gumex, e os sapatos, engraxados até que espelhassem.

Época em que criar pássaros ainda não chamava tanta atenção. Curiós, bicudos,coleiras e canários podiam cantar a vontade…sem tantos documentos que os tornam mais legais do que nós.

O Bar do Sócio: assim era chamado pela forma carinhosa com que os três proprietários e irmãos se dirigiam a todos os seus fregueses.Chamado hoje de Cú do padre, pela localização……ao fundo da Igreja Matriz. As batidas, em todos os seus sabores, atraiam visitantes de toda São Paulo, principalmente os estudantes…. esses eram um caso à parte, pela proximidade com a USP e um pouco menos com o Mackenzie , disputavam o pequeno espaço que o bar ocupava na esquina, e que mesmo com todo sucesso nunca despertou o interesse em seus sócios em ampliar seu negócio. Era um território de paz, as flâmulas (quem se lembra delas?) pregadas nas janelas dos armários até hoje evidenciam isso. Um belo dia, Moreno, único remanescente nos dias atuais dos antigos sócios, fez uma promessa que as garrafas de pinga de várias procedências que estavam nos balcões e os queijos parmezões (daqueles enormes) dependurados pelo bar, só seriam abertos se o Corinthians fosse campeão. Começava ali uma espera de 21 anos, com a promessa sendo religiosamente cumprida.

Pensava nisto tudo quando saboreava um lanche de lingüiça calabresa ( do mesmo fornecedor há quarenta e cinco anos), incrementado com lascas de parmesão, pickles e molho inglês. Lembrei que sempre levei amigos passarinheiros lá, estava voltando da visita justamente de um deles, o Albertino, grande figura….Já foi palco de embates do Magelão, Aloísio, Hans, dentre tantos. O Roberto de São Manuel fiz questão que lá também conhecesse.

Logo meus pensamentos voltam para o presente. Olhando para a rua, vejo uma Kombi encostando e uma longa fila se formando. Pessoas apareciam de todas as ruas próximas quando percebi que o motorista abriu a porta traseira e começou a servir marmitex, me lembrando muito a cerimônia da comunhão. Todos silenciosamente recebiam seus pratos, para muitos a única refeição do dia, agradeciam com um sorriso, um aceno de cabeça, ou quando muito, com um balbuciar de muito obrigado. Comecei a observar mais atentamente. Dois sentimentos me invadiam ao mesmo tempo: a felicidade de testemunhar a solidariedade e a terrível sensação de que o sistema em que vivemos realmente está falido.

As faces, disfarçadas pela luz de mercúrio da noite, não são enrugadas como os dos homens do campo, fustigados pelo sol. Pelo contrario, são lisos e sem rugas, conseqüência do inchaço provocado pela bebida. Nas mãos, em lugar dos calos dos que lidam com a enxada, cicatrizes e ferimentos ainda abertos, em acidentes sofridos quando á cata de refugos.

Ainda assim admirava a altivez e o empertigar dos corpos na hora de receber as refeições. A disciplina tão rígida quanto o mais austero dos mosteiros, era natural

Terminava meu lanche. Quase 10,00 reais. Lembrei do meu amigo na UTI de um dos melhores hospitais de São Paulo.

Lembrei que moro em São Paulo.

Escrito por Rogério Fujiura, em 30/10/2004

Boto e Iemanjá

O Esplendor da criação

Na pororoca das águas amazônicas possam se encontrar a Iemanjá das águas do mar e o Boto do encanto das águas doces, enquanto as brumas emolduram esse amor.

O canto enrouquecido do cortejo seja tão agradável quanto a voz rouca dos amantes ensandecidos.

E, na paz do seu retiro, suas notas possam ir desfilando e preenchendo nossos ouvidos, por mais dileto que seja o dialeto, as individualidades dos sons permitirão a identificação dos seres tão semelhantes aos olhos dos ineptos, mas tão diferentes \’aqueles que os amam e neles reconhecem cada nota.

Não importa se do sul, centro ou do norte, o duelo vai ser de oponentes que, em um cavalheirismo medieval, irão se confrontar com as armas que escolheram, o canto. Duetos dignos de se ver, ouvir e admirar.

A fêmeas, pardas morenas, aos olhos de Di Cavalcanti teriam aquele olhar maroto das brejeiras que tantos Amados e Buarques encantaram.

Ah, os bicudos, que de bicos brancos, chifrados ou pretos, tiram seu som gutural do âmago do seu ser…! Seres viventes, que tal qual os solistas, sabem envergar tal postura que deles é nato. Quem lhes terá impostado tal elegância? O ébano reluz, emprestando-lhe o sol mais beleza que só o divino poderia oferecer.

Que homenagens se pode prestar a estes cantores, que com aplausos não se iludem?! Permitir-lhes entoar seus cantos, fazendo coro a seus semelhantes, nos inebriando em uma sinfonia sem regentes, sem astros de grandeza maior, a não ser a harmonia singular dos cânticos das matas.

E as lendas, com seus mitos e deuses, poderão se encontrar nos mais incertos cenários, de Vitórias Régias às Araucárias, planícies e montes, mudando suas cores ao sabor da caminhada solar… Teremos apenas então, com nosso silêncio, que reverenciar o esplendor da Criação.

Rogério Fujiura

Escrito por Rogério Fujiura, em 26/10/2004